A Criminalização do Aborto no Brasil e Suas Consequências Sociais
- Pugna!
- 25 de abr. de 2020
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Foto: FERNANDO FRAZÃO (AG. BRASIL)
No dia 23 de abril de 2020, o presidente Jair Bolsonaro afirma “enquanto eu for presidente, não terá aborto”. Uma pequena correção: não haverá aborto legal, pois é prática comum ainda que na ilegalidade. Diariamente, mulheres morrem pela falta de acesso ao aborto seguro. A questão aqui nunca foi se será feito. É feito, não há argumento contra isso. A cirurgia de curetagem, que consiste na limpeza do útero, em geral feita após procedimentos de aborto, foi a de maior número no SUS no período de 1995 a 2007 (1). Durante esses doze anos, cerca de 3 milhões de mulheres fizeram o procedimento no país (1). Não há dados que mostrem acertadamente a porcentagem dos que foram feitos de forma legal e ilegal, visto que não é algo geralmente informado por essas mulheres. O que se sabe de fato é: o SUS atende 100 vezes mais casos de pós-aborto do que o realiza de forma legal, de acordo com reportagem feita pelo UOL com dados do Sistema de Informações Hospitalares do SUS (SIH/SUS), do Ministério da Saúde (2).
Entretanto, temos que adicionar mais um fator ao risco: classe social. A criminalização do aborto não afeta a camada mais rica da população, que tem muitas escolhas de como prosseguir. De procurar clínicas seguras e médicos renomados dispostos a fazer o procedimento em troca de dinheiro a viajar para países onde o procedimento é legal, é fato inegável que o grau de risco é consideravelmente diminuído. Chegamos a uma questão interessante. O que mais mata mulheres? O aborto ou a desigualdade? Eu creio que a desigualdade.
Agora que já entendemos que o aborto é nada menos que a realidade brasileira e as mortes as quais o acompanham são fruto de nossa desigualdade, podemos prosseguir para a situação legal desse crime no país. Primeiro, é importante sabermos as três situações em que o aborto é atualmente permitido: risco de vida à gestante, estupro e feto anencéfalo (após a decisão de 2012 pelo Supremo Tribunal Federal) (3). Chegamos então à sua punição. A lei brasileira prevê de 1 a 3 anos de reclusão para gestante. Ou seja, o pai não é penalizado pelo procedimento, mesmo que a mulher o tenha feito por falta de apoio ou até mesmo incentivo. O que fala a lei é “qualquer terceiro que provoque o aborto com o consentimento da gestante pode ser condenado à pena de reclusão de 1 a 4 anos” (4). Há no Senado atualmente um projeto de lei que visa aumentar a pena caso o terceiro seja pai, porém ainda não foi aprovada. Por fim, a culpa cai nos ombros das gestantes, que tem dupla punição: criminal e social. O apoio recebido por essas mulheres é mísero, quando existe. No geral, são duramente julgadas, inclusive pelos próprios profissionais de saúde ao procurarem os hospitais. Muitas vezes, quebrando o sigilo médico que deveria existir na relação com pacientes e as denunciando para a polícia (5). Assim, um procedimento que já é em sua essência traumático toma proporções ainda maiores.
Voltando à situação paterna, essa discussão precisa incluir um tópico de extrema importância, mas que não possui a discussão que merece e necessita na mídia brasileira. Abandono parental, mais especificamente o paterno, o equivalente a um “aborto masculino”. No Brasil, mais de 5,5 milhões de crianças não tem o nome de seus pais na certidão de nascimento (6). A mãe ou a pessoa que cuida dessas crianças, quando não estão em situação de rua sem nenhuma figura familiar, não recebe pensão ou apoio. A responsabilidade que chega com o nascimento de uma filha ou filho deixa de ser compartilhada. Nesse caso, nem sequer deixa porque nunca o foi. Sem o reconhecimento da paternidade, nenhuma punição é exercida. O Estado precisa oferecer respostas e soluções, pois os números não param de crescer. Somente em Uberlândia – BH, 70 crianças são registradas mensalmente sem o nome do pai (7). As consequências são graves e podem levar à miséria de uma família. É trágico que a questão não seja tratada com devida seriedade.
Olhemos para essa problemática com uma perspectiva econômica. Quanto custa ao povo brasileiro a criminalização¿ Nada menos do que 140 milhões de reais ao ano em internações no SUS (8). Uma quantia que poderia estar sendo investida em soluções mais inteligentes para a diminuição do número de abortos no Brasil, como educação sexual, consultas com psicólogos ou psiquiatras antes e depois do procedimento e a construção de clínicas especializadas no atendimento à mulher, evitando a violência. Em outros países, como Portugal, a legalização do aborto teve efeito reverso. A cada ano houve uma no número de procedimentos (9). Isso nos leva a refletir se essa é mesmo a melhor forma de prevenir a gravidez indesejada, que é naturalmente o que cria toda essa inconveniência.
A gravidez é um fator decisivo, com o poder de impactar todos os planos de um indivíduo. Um filho não é um brinquedo, e sim uma responsabilidade eterna. Nem todas as mulheres estão preparadas para mudar completamente suas vidas. E com preparadas digo financeiramente e emocionalmente. Quem sou eu para exigir que uma mulher carregue em seu corpo por mais ou menos 9 meses um bebê que ela não deseja ou que não pode criar por questões econômicas? Como será a vida de uma criança gerada nessas condições? Não estaria ela mais propensa a uma vida de criminalidade? E se essa criança cresce e se volta para o crime por não ter nenhuma perspectiva de sucesso, por que você defende que bandido bom é bandido morto? E mesmo que não defenda, por que seria justo que é você quem tem o direito de decidir sobre o corpo de uma outra pessoa e todos os impactos que isso gerará? E não me venha dizer que ela engravidou porque quis ou por pura irresponsabilidade, pois é comprovado cientificamente que nenhum método contraceptivo é 100% eficaz na prevenção da gravidez (10). Também é perigoso tentar impor os princípios de sua religião a outras mulheres, pois o Estado continua sendo laico mesmo que seus membros se elejam com discursos religiosos. Por exemplo, na Irlanda, país de maioria católica, aprovou-se por voto popular a legalização do aborto com 66% dos votos (11). Espero que um dia o Brasil, como a Irlanda, possa entender que isso vai muito além de valores pessoais ou religião, é uma questão humanitária. Mulheres morrem e continuarão morrendo se nada for feito. Não está se discutindo se você deseja realizar um aborto, mas que todas as mulheres tenham o direito de fazê-lo sem risco de morte, se assim sentirem necessidade. Atualmente, quem quer realizar o aborto, realizará. O que está realmente em jogo é se será feito de forma segura.
No Congresso Federal, a posição majoritária é contrária à legalização, o equivalente a 57% dos deputados e senadores (11). Porém, levemos em consideração que 85% dele é composto por homens. Corpos femininos estão nas mãos de uma maioria masculina. Não temos poder de escolha ou autonomia e essa é uma das maiores razões pelas quais ainda não nos foi concedido o controle sobre nós mesmas. Não podemos esperar que ele nos sejam garantidos por homens. Assim, cada dia se torna mais necessária à nossa representação no âmbito político. Pautas femininas serão levantadas por mulheres. Homens devem servir como aliados de uma guerra que nos pertence e há muito nos oprime. Porém, cabe a nós a liderança e sem ela será difícil que se chegue muito longe.
- Por Celi Mitidieri
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