Redação estilo ENEM: padronização ou habilidade?
- Pugna!
- 5 de nov. de 2020
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Cinco competências. Quatro parágrafos. Gênero dissertativo-argumentativo. Uso de
repertório socio-cultural. Todo estudante do ensino médio não apenas sabe o que essas características definem, como também entende o apavorante fato de que conseguir uma nota boa ou não é decisivo na hora da aprovação. No entanto, a maioria nunca realmente parou para refletir acerca do que realmente a redação representa para nós como membros de uma sociedade e, especialmente, como seres humanos. Seria uma espécie sutil de padronização intelectual? Uma leve forma de restringir e direcionar nossa liberdade de expressão? Essa questão urge ser discutida.
Vou começar esse artigo com definições e explicações sobre cada palavra-chave desse primeiro parágrafo. Segundo o portal de auxílio a estudantes Toda Matéria, "Redação dissertativa, ou texto dissertativo, é o tipo de texto que apresenta argumentos e expõe ideias acerca de um tema proposto". Ademais, de acordo com o próprio Ministério da Educação, redações nota mil devem atingir excelência nos seguintes quesitos: possuir uma proposta de intervenção para o problema apresentado no tema; ter repertório sociocultural produtivo no desenvolvimento da argumentação do texto; respeitar os direitos humanos; apresentar as características textuais fundamentais, como coesão e coerência; demonstrar domínio da modalidade escrita formal da língua portuguesa; atender ao tipo textual dissertativo-argumentativo. Parece fácil, não é? É uma caixa em que precisamos caber, mesmo que ela seja desconfortável e restrinja nossos movimentos e pensamentos.
Os três últimos requisitos citados pelo MEC são os mais básicos, que na verdade consistem em algo essencial: saber escrever. E é justamente isso que julgo como uma das únicas características louváveis do grande papel da redação: você pode até saber de cor todas as leis da física, entender as funções de cada organela celular e ter a curiosidade de examinar cada detalhe do espírito maquiavélico de Vargas, mas se não compreender a diferença entre "mas" e "mais", pode ficar bastante difícil entrar no curso tão disputado. De fato, posso afirmar que sou eternamente grata à redação por ensinar a mim e a tantos outros o que seria um texto coeso, argumentativo e suave.
Porém, tudo fica um pouco desanimador quando analisamos as outras exigências. A princípio, o ultrajante pedido por uma intervenção. Vamos surtar por alguns segundinhos com a ajuda dos pensamento que tivemos quando fomos introduzidos a esse gênero textual: "Por que eu tenho a responsabilidade de criar uma solução para um problema aparentemente ignorado pelo governo?". Eu honestamente ainda não consigo entender. Não o fato de que o governo age um tanto hipocritamente (isso todos nós já compreendemos e vimos com os próprios olhos quando, no ano passado, após a ameaça do fechamento da Ancine, o tema da redação foi a democratização do acesso ao cinema), e sim o porquê é exigido de nós propor a agentes de poder, como ONGs, Ministérios e sindicatos, uma ação ilusória, com finalidade, meio e detalhamento, sendo que já é tão claro que (perdoem-me pelo palavriado) eles ou não têm o poder que achamos ou não se importam. Se não quisermos zerar toda a competência de intervenção, também não podemos propor a conscientização ou o incentivo a ações puramente individuais e solidárias, pois ironicamente isso é considerado como nulo: é como gritar no vácuo, não dará em nada.
Que tal decorar as ideias, nomes e nacionalidades de filósofos e sociólogos? Isso também é necessário. Conforme o que eu ouvi de vários professores de redação, repertório é tudo que você pode tirar de outras matérias e relacionar aos seus argumentos. Exemplos clássicos são a Constituição, um filme que você viu há três anos e que tem um detalhe que possa ser problematizado, frases soltas que sites duvidosamente atribuem a filósofos e as clássicas teorias sociológicas aprendidas através de aulas ou, mais comumente, em redações de outras pessoas e apostilas de repertório soltas pela internet. Mesmo dizendo que toda matéria vale, sabemos que os corretores não querem as lições de vida que você aprendeu, o senso comum ou uma estranha conexão com as leis da termodinâmica. Eles querem Sartre, Escola de Frankfurt, Weber, Marx, Nietzsche e Milton Santos. Eles não querem que você cite uma ideia que aprendeu ao ler algum livro desses pensadores, mas sim algo que os agrade. Do jeito que falo, parece que vejo esses profissionais como perfeccionistas e irritadiços. De forma alguma, eles só foram treinados a agir assim e a consequentemente limitar o número de notas altas (o diabo aparentemente estaria nas vírgulas).
Outrossim, não é necessário falar sobre o respeito aos direitos humanos, visto que isso é um dever de nós como cidadãos na vida como um todo. Vamos agora falar sobre padronização e liberdade de expressão e o que elas teriam a ver com toda essa imperfeita história. O conceito de padronização é, ao contrário do que normalmente pensamos, bastante complicado. Por trás dele, há uma longa história acerca da economia internacional, da Revolução Industrial e dos modos de produção, então nesse caso, é melhor analisar essa ideia por meio de uma definição de dicionário. Desse modo, padronização seria qualquer processo social que resulta na tendência de uniformização de comportamento ou de outros elementos culturais. Para termos um pouco mais de perspectiva, vamos dar uma olhada nos tipos de produção textual pedidos por vestibulares que se diferenciam do modelo ENEM e seus possíveis distanciamentos da uniformização de pensamento.
O Comvest, processo seletivo da Unicamp, propôs aos alunos da segunda fase que executassem um dos seguintes tipos de produção: uma crônica retratando micromachismos ou um texto preparatório para um podcast sobre biodiversidade. Apesar de bastante criticadas pelos estudantes, que alegam terem sido pegos de surpresa, as propostas foram libertadoras. Além de poder escolher o gênero textual com o qual se sentia mais confortável, o aluno pôde escrever a quantidade de parágrafos que julgava adequada, teve a opção de adotar um tom poético, esperançoso ou pessimista, e foi julgado, principalmente, pela sua escrita, e não por seu conhecimento filosófico ou por uma proposta de intervenção ilusória e inútil. A parte estatisticamente interessante disso é que entre 12,2 mil participantes, 160 obtiveram nota máxima, enquanto no ENEM, com 3,9 milhões de candidatos, apenas 53 obtiveram mil. Semelhantemente, no processo seletivo da Universidade Estadual do Ceará (UECE), os alunos tiveram que escolher entre escrever um manifesto a favor da preservação das águas e um relato de viagem. A banca desse vestibular, por outro lado, é conhecida por ser rigorosa e afirmou que o aluno interessado não devia se limitar a estudar apenas a dissertação argumentativa. De qualquer forma, esses dois vestibulares cobram do estudante duas coisas extremamente essenciais para sua formação: um bom português e o conhecimento das tipologias textuais, ambos já ensinados desde o ensino infantil. E o que isso teria a ver com padronização e uniformização?
As propostas da UECE e da Unicamp se distanciam desses dois termos. A produção textual pedida permite que o aluno deixe a essência dele no texto, seja na força das frases impactantes necessárias em um manifesto, seja o humor e a observação detalhada substanciais em uma crônica. Nessas propostas, temos a simples e incrível liberdade de escolher e escrever quase livremente. Já no ENEM, se a fórmula 1000 for seguida, escrever se transforma um processo cansativo, repetitivo e nada prazeroso. E é assim que acabamos fazendo parte de uma padronização: somos julgados por tudo que desvie do modelo ideal e consequentemente, deixamos de pensar no quanto acreditamos em nossas opiniões e na validade de nossos argumentos. Só queremos a nota.
Não fiz esse artigo com a intenção de alarmar ou de ser anarquista, até porque dependo da redação para o meu futuro em 2022. Escrevi para que entendamos melhor o que é pedido de nós. Termino pedindo para você, querido leitor, que aprenda a se expressar, que aprimore sua gramática e que não pense que uma nota de redação definirá seu potencial de escrita. Somos mais que uma nota.
-Por Ana Ferreira, escritora sentimental e (só às vezes) irônica
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