Cidade de Deus - Literatura como Reflexo de uma Sociedade Caótica
- Pugna!
- 8 de mar. de 2020
- 5 min de leitura
Atualizado: 12 de mar. de 2020

Quão ineficiente precisa ser o governo brasileiro para que os maiores problemas retratados em Cidade de Deus, cujo contexto histórico vai de meados dos anos 60 ao início dos 90, continuem presentes e fortes em pleno 2020? E não me entenda a mal, eu não sou esse tipo de pessoa que acha que, porque estamos no ano X ou Y, já deveríamos entender e ter resolvido todos os problemas sociais já que somos suficientemente “evoluídos”. Não somos, e mudar as crenças e visões de uma sociedade leva tempo. Porém, nada justifica que, mesmo depois de 60 - 30 anos, ainda tenhamos na favela brasileira os grandes problemas persistindo diariamente.
Racismo. Machismo. Abuso de autoridade. Guerra às drogas. LGBTQ+fobia. Criminalização do aborto. Ineficácia das penitenciárias em seu papel de reeducação. Abandono escolar. Exploração das domésticas. Xenofobia. Ineficácia da segurança pública. Iniciação infantil na criminalidade. Milícias.
Isso não significa que os avanços não mereçam reconhecimento. A lei das domésticas, lei Maria da Penha, criminalização do racismo, da homofobia e da transfobia. Mudanças precisaram vir e vieram, mas não foram o bastante para não termos que, ainda hoje, lidar com todas essas dificuldades, mesmo que numa escala menos óbvia.
Cidade de Deus é um livro necessário. Um misto entre fatos reais e ficçã0, foi fruto de uma vida de experiência na favela. Ainda assim, foi somente após 8 anos de escrita (1986-1993) e muita pesquisa que a obra-prima do autor foi finalizada. Uma narrativa complexa, mistura o cotidiano das diversas pessoas da comunidade com as jornadas de Inferninho, Pardalzinho e Zé Miúdo, através de pequenas histórias ininterruptas. Como uma leitura tão complexa pode ser ao mesmo tempo inebriante e simples, é algo que não se pode explicar, apenas apreciar. Dessa forma, é por meio dessas curtas narrativas que entendemos que o tema central do livro é a violência, e o destaque para qualquer personagem em especial é puramente para nos fazer entender quão brutal é aquele ambiente. A própria favela é protagonista.
Assim, Lins se exime de qualquer julgamento e mostra a realidade de Cidade de Deus de forma objetiva. Isso nos ajuda como leitores a desenvolvermos nossa própria opinião. Porém, Lins não nos dá tanta liberdade para ver o bandido como o único culpado, enfatizando as condições sociais dos indivíduos, de forma especial em seus momentos finais. Isso nos descontrói, nos desarma. De repente, alguém que fez tanto mal já não parece mais um monstro a ser destruído, mas uma pessoa com sentimentos e inseguranças, que, de alguma forma, acabou sucumbindo à vida do crime por não ter perspectivas de melhora social. Em nenhum personagem encontraremos um herói, mas também não acharemos um vilão. Os vilões são a sociedade, a violência, o preconceito; são os problemas sociais. Por isso, um meio cheio de perigos forma pessoas perigosas, e assim segue-se de forma cíclica e eterna.
Porém, ainda que tenhamos lido o suficiente e cheguemos num ponto em que sabemos o que iremos encontrar no quesito violência, nada doía mais do que ver as crianças envolvidas no tráfico. Vê-las matar e morrer com a idade de 9 anos. É doloroso porque é concreto. Quem seriam essas crianças em 10 anos, se sobrevivessem até lá? No caso de Inho, temos um exemplo mais detalhado no livro. Mesmo com todos os esforços de sua mãe para que não entrasse na vida do crime, nada funcionou. Sonhava ser bandido e cresceu para virar Zé Miúdo, uma das figuras mais poderosas no tráfico do Rio. O perigo começa na infância, quando temos crianças como criminosas, bandido como profissão, arma como prêmio, matar como ritual de iniciação.
E qual o papel da escola? Com o índice de evasão escolar nas alturas, muitos são semianalfabetos ou analfabetos. Não têm acesso à educação na escola e nem em casa porque mulher na periferia tem que trabalhar desde cedo para se manter, sem condições de dar a atenção que gostaria aos filhos. Para onde vão essas crianças? Pro crime. E qual o papel da polícia? Nenhum que ela cumpra, pois é tão bandida quantos os que prende (quando não mata). A polícia de Cidade de Deus é conivente com os roubos e com o tráfico porque ganha a sua parte. Mal-remunerados, vendem-se fácil e roubam o roubo dos ladrões, além de vender-lhes armas para depois apreendê-las e assim fazer mais dinheiro. Sanguessugas, alimentam-se da criminalidade. Não veem humanos, mas animais. Matam sem piedade e sonham um sonho tranquilo toda noite em suas camas, isso quando os bandidos não ganham a vez, pois nesse caso o sonho é no caixão. Assim, vemos que a polícia é tão criminosa quanto qualquer outro bandido da favela, quando não mais. A única diferença entre eles é que o policial está em uma posição de poder e privilégio na sociedade, enquanto o favelado (ainda mais quando se é negro) é base da escala social, esquecidos e menosprezados em suas inocências ou em suas maldades.
Com a ineficácia policial, as leis são aquelas ditas pelos poderosos na favela, principalmente a partir da segunda fase do romance. Na primeira, que retrata o surgimento do bairro, o foco está em assaltos e furtos, que nascem de uma sensação de necessidade e não necessariamente de poder. A polícia ainda tinha voz, mas com o surgimento da cocaína e a intensificação do tráfico de drogas, surgem gangs organizadas. Os policiais passaram a sentir a ameaça de morte quando estavam em menor quantidade e confrontavam bandidos, completa inversão de poderes. A narrativa mostra a transformação da favela ao longo dos anos e as mudanças nas dinâmicas de poder, que pulam de grupo para grupo à medida que se matam. Nessa segunda fase, também são enfatizados os cocotas, jovens brancos classe média alta que iam à favela em busca de drogas, e problemas como transfobia, relacionamento abusivo e, de forma mais intensa, o corrupto e ineficaz sistema carcerário brasileiro. Já na terceira fase, explode uma guerra civil. Todas as fases do romance são marcadas pela mais pura violência, uma volta à barbárie.
Marcante na escrita de terceira pessoa do autor é sua volatilidade linguística para retratar cada grupo e pessoa sem estereótipos, mas como realmente se comunicam e são. Trabalho baseado em tamanha pesquisa tem sua importância ainda mais elevada por seu valor histórico e cultural. Talvez por isso, o livro não tenha sido lançado com expectativas muito grandes de venda, já que seu foco era o estudo universitário. Porém, o livro foi aclamado tanto pela crítica quanto pelo público comum. E graças a uma extremamente bem-feita adaptação ao cinema por Fernando Meirelles, ficou conhecido internacionalmente.
Por fim, resta-nos apenas parabenizar Paulo Lins pela sua magnífica estreia, já que antes escrevia apenas poemas. Se arriscou, jogou-se de cabeça num projeto magnífico com objetivo de chamar atenção para as causas da favela e mudar sua realidade. Infelizmente, continuamos com os mesmos problemas, como reconhece o próprio Lins em entrevista concedida ao Itaú Cultural, “...a violência não diminuiu, então o livro foi em vão”. Discordo. O livro foi um passo ao entendimento, à mudança. Nossa existência é composta de pequenos passos.
-Por Celi Mitidieri
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