Alceu Valença: o anjo que sussurra e acalenta o coração dos nordestinos
- Pugna!
- 28 de ago. de 2020
- 6 min de leitura
Em suas músicas e poesias, Alceu Valença consegue, de forma simples e única, assimilar elementos nordestinos à letras delicadas e extremamente poéticas. Tal combinação obtém um sucesso evidente. Afinal, que nordestino nunca ouviu Anunciação ou La Belle De Jour e sentiu um aconchego? Nesse artigo, a trajetória incrível de Alceu e suas maiores músicas serão analisadas.
Alceu Paiva Valença nasceu no dia 1 de julho de 1946 em São Bento do Una, cidade situada entre o agreste e o sertão pernambucano. Ele cresceu apaixonado pela música e inspirado por cantores como Luiz Gonzaga, o que não é nada surpreendente quando consideramos que seu avô, responsável pela sua criação, era poeta e violeiro. Mais tarde, ele se mudou para Recife com o intuito de aprimorar sua formação acadêmica e se familiarizou com estilos musicais como o samba, o MPB e, principalmente, o rock and roll. Alguns anos depois, passou na Faculdade de Direito do Recife. Segundo o site oficial do cantor, nessa época, ele se inscreveu num curso de três meses em Harvard, onde, mesmo sem saber inglês, elaborou redações comparando o Marxismo à Igreja e criticando as ideologias políticas contraditórias celebradas pela sociedade.
Depois de voltar ao Brasil e de se formar oficialmente, Alceu logo desistiu da carreira de advogado e começou a explorar sua musicalidade. Em 1970, ele se mudou para o Rio de Janeiro com Geraldo Azevedo, seu amigo e, também, músico. Dois anos depois, Alceu teve a oportunidade de se apresentar no Festival Internacional da Canção, mas foi desclassificado porque a orquestra do evento não conseguiu tocar o arranjo de sua música. No mesmo ano, lançou, junto com Azevedo, o LP "Quadrafônico", que foi fortemente censurado na época, pois diziam que as canções incentivavam o uso de entorpecentes e a rebeldia juvenil. Não obstante, Alceu passou a chamar atenção.
O compositor Sergio Ricardo, intrigado pela personalidade e pelo talento de Alceu, o convidou para gravar "A Noite do Espantalho", um filme musical e do movimento contracultura, que posteriormente foi o representante do Brasil para o Oscar de melhor filme estrangeiro em 1975. No entanto, o filme não foi indicado e continua a ser desvalorizado até o período atual. No mesmo ano, lançou seu primeiro álbum oficial, "Molhado de Suor", gravado pela Som Livre. Podemos afirmar que o real estopim da fama de Valença foi quando ele se apresentou no Festival Abertura, da TV Globo. O evento foi um verdadeiro espetáculo: a TV em technicolor havia acabado de ser lançada, e a emissora tirou o maior proveito disso possível ao trazer músicos verdadeiramente inovadores às casas de diversas famílias brasileiras. Ademais, Alceu deu uma performance exímia cantando "Vou Danado pra Catende", cuja letra é mostrada abaixo:
"Ai
Telminha
Ouça esta carta
Que eu não escrevi
Por aqui
Vai tudo bem
Mas eu só penso
Um dia em voltar
Ai
Telminha
Veja a enrascada
Que fui me meter
Por aqui
Tudo corre tão depressa
As motocicletas se movimentando
Os dedos da moça
Datilografando
Numa engrenagem
De pernas pro ar
Eu quero um trem
Eu preciso de um trem
Eu vou danado pra Catende
Vou danado pra Catende
Vou danado pra Catende
Com vontade de chegar
E o sol é vermelho
Como um tição
Eu vou danado pra Catende
Vou danado pra Catende
Vou danado pra Catende
Com vontade de chegar
Mergulhão, mucambos, moleques, mulatos
Vêm vê-los passar
Adeus, adeus, adeus
Adeus morena do cabelo cacheado
Maribondo sai da mata
Que lá é casa das caiporas
Caiporas, caiporas, caiporas".
A música uniu versos do poeta pernambucano Ascenso Ferreira com elementos do rock clássico, um ritmo e uma melodia que soavam novos, mas familiares para os nordestinos. Essa canção revela um Alceu apaixonado por suas raízes e também culto e conhecedor da arte musical, uma combinação perfeita e nunca vista antes. Ao mesmo tempo, ele subitamente desafiava e desmascarava os outros cantores de sucesso da época através de letras delicadas e ácidas.
Nos anos seguintes, são lançados "Vivo!", álbum gravado num show experimental e psicodélico de Alceu no Rio de Janeiro e o LP "Espelho Cristalino". Em tal álbum, se tornou evidente a opinião dele quanto à ditadura militar, que era duramente criticada por meio de analogias, metáforas, ritmos e letras instigantes. No início da década de 80, começa a fama "mainstream" de Alceu, que se torna a figura tão amada e consolidada que é hoje.
Em minha vida tão curta, que ironicamente parece até longa ao ser refletida, tive um contato com Alceu muito semelhante ao de outros jovens nordestinos. Nos tempos em que eu ia a festas de São João apenas por obrigação, pois achava meu vício em cantoras pop americanas da Disney superior à cultura regional, mal prestava atenção nas letras e nos ritmos das músicas tão celebradas e admiradas pelos meus parentes. Eu achava aquilo tudo, no mínimo, estranho. Eu, por exemplo, não entendia a analogia de Gonzagão de que "mandacaru quando fulora na seca é o sinal que a chuva chega no sertão, toda menina que enjoa da boneca é sinal que o amor já chegou no coração" ou porque veneravam tanto a figura de Lampião, pois haviam me dito na escola que ele era só mais um criminoso desvairado. Eu tentava entender tudo ao pé da letra, sem olhar ao fundo a história e a importância do que me rodeava. Acho que me bastou somente um pouco de conhecimento poético e de respeito à minha terra para entender que a arte nordestina era algo grande demais para eu compreender. Bom, agora eu tento compreender e ser grata à ela todos os dias, pois sem ela... Sem ela não teríamos Luiz Gonzaga, Guimarães Rosa e, o tema dessa singela homenagem, Alceu Valença.
Como dito anteriormente, foi no começo dos anos 80 que ele passou a ser o Alceu conhecido e amado por nossos pais, nosso avós e por nós. Em 1982, no álbum "Cavalo de Pau", surgiu "Tropicana", uma das maiores homenagens à beleza da mulher nordestina, uma canção equiparável à famosa "Garota de Ipanema". Parte dos versos da exímia canção são expostos a seguir:
"Da manga rosa
Quero gosto e o sumo
Melão maduro, sapoti, juá
Jaboticaba, teu olhar noturno
Beijo travoso de umbu-cajá
Pele macia
Ai! Carne de caju!
Saliva doce, doce mel
Mel de uruçu
Linda morena
Fruta de vez temporana
Caldo de cana-caiana
Vem me desfrutar!
Linda morena
Fruta de vez temporana
Caldo de cana-caiana
Vou te desfrutar!
Morena Tropicana
Eu quero teu sabor
Ai, ai, ai, ai (ô, iô, iô, iô)
Morena Tropicana
Eu quero teu sabor
Ai, ai, ai, ai
Linda morena
Fruta de vez temporana
Caldo de cana-caiana
Vem me desfrutar!
Morena Tropicana(...)"
Com esse sucesso, "Cavalo de Pau" se tornou um disco de diamante e Alceu ganhou um enorme reconhecimento internacional. No ano seguinte, com o álbum "Anjo Avesso", foi lançada a música que seria a maior de toda a sua carreira: "Anunciação". Em entrevistas, Alceu contou como surgiu a inspiração para a música, "em 1983, eu estava brincando com uma flauta no jardim da minha casa em Olinda. Lembro até hoje, era uma flauta simples que comprei de um hippie no Rio Grande do Sul. Foi aí que me surgiu a melodia de Anunciação. Minha namorada ouviu aquilo e falou: ‘Que música bonita essa que você está tocando!‘. Inspirado, saí tocando pelo quintal e lá estavam as roupas no varal. Fui até a rua, e ouvi o sino da catedral… isso tudo foi colocado na letra da música depois".
Fica apenas uma dúvida... Sobre o que realmente seria a canção? Várias teorias acerca disso circulam pela internet, mas apenas duas podem realmente ter validade. A primeira afirma que a música realmente retrata a espera pelo amor, seja por uma pessoa amada que esteja distante ou pelo próprio amor, que não teria se encontrado ainda com o interlocutor. O amor, nesse caso, não representaria algo ameaçador ou que irá ferir o amante, mas sim algo que trará alegria, que dará graça a atividades cotidianas, como pendurar roupas no varal, algo que vale a pena ser anunciado.
A segunda teoria declara que a música é sobre a ditadura militar. Vale ressaltar que, quando Alceu lançou a canção, a ditadura estava começando a decair e o movimento Diretas Já estava se formando. Assim que a música nasceu, tal movimento a utilizou como um hino pró-democrático. Essa colocação faz bastante sentido, pois o próprio Alceu já afirmou que o artista é um repórter poético. Outrossim, a chegada retratada pode ser a da tão esperada liberdade.
Espero que esse pequeno texto tenha conseguido mostrar a você, querido leitor, a importância de Alceu para a valorização da cultura nordestina por jovens e internacionalmente e para o movimento brasileiro da contracultura. Ao primeiro olhar, Alceu pode parecer só mais um cantor de MPB, mas confie em mim, esse não é um estereótipo que reflete a grandeza da obra dele, sem contar que ele vai totalmente de encontro a tal estereótipo. Só tenho mais uma mensagem: apoie artistas regionais e valorize sua cultura. Finalizo com os versos da obra-prima de Alceu:
"Na bruma leve das paixões
Que vêm de dentro
Tu vens chegando
Pra brincar no meu quintal
No teu cavalo
Peito nu, cabelo ao vento
E o sol quarando
Nossas roupas no varal
Tu vens, tu vens
Eu já escuto os teus sinais
Tu vens, tu vens
Eu já escuto os teus sinais
Ah! ah! ah! ah! ah! ah!
Ah! ah! ah! ah! ah! ah!
Ah! ah! ah! ah! ah! ah!
Ah! ah! ah! ah! ah! ah!
A voz do anjo
Sussurrou no meu ouvido
Eu não duvido
Já escuto os teus sinais
Que tu virias
Numa manhã de Domingo
Eu te anuncio
Nos sinos das catedrais
Tu vens, tu vens
Eu já escuto os teus sinais
Tu vens, tu vens
Eu já escuto os teus sinais
Tu vens, tu vens
Eu já escuto os teus sinais
Tu vens, tu vens
Eu já escuto os teus sinais
Tu vens, tu vens
Eu já escuto os teus sinais"
-Por Ana Ferreira da Motta Costa
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