João Cabral de Melo Neto: o poeta engenheiro
- Pugna!
- 5 de dez. de 2020
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"O meu nome é Severino,/ como não tenho outro de pia./ Como há muitos Severinos,/ que é santo de romaria,/ deram então de me chamar/ Severino de Maria;/ como há muitos Severinos/ com mães chamadas Maria,/ fiquei sendo o da Maria/ do finado Zacarias". Considerado o maior poeta de língua portuguesa por escritores como Mia Couto, João Cabral de Melo Neto construiu seus memoráveis poemas acerca do sofrimento causado pela seca nordestina de forma impecável e polida, mesmo afirmando que escrever era estar no extremo de si. Quer saber como se deu a trajetória desse poeta? Então vem comigo! Serei sua feliz guia.
Como clássico de meus artigos, vamos começar com a biografia do autor. João Cabral de Melo Neto nasceu no dia 9 de janeiro de 1920 em Recife, capital de Pernambuco. Filho de donos de engenhos nas cidades de São Lourenço da Mata e Moreno, ele passou os primeiros dez anos de sua vida tendo uma infância considerada mais que ideal para um jovem da época. Seu tempo era dividido em duas residências: na casa da avó, onde lia tudo que pudesse encontrar, e na fazenda dos pais, onde ganhou uma perspectiva um tanto incomum acerca da vida ao conviver, em maior parte, com os funcionários do local. Com dez anos, sua família se mudou para Recife e ele estudou no Colégio de Ponte d'Uchoa Marista, onde completou seu ensino médio em 1938. Perdão por uma introdução tão breve, confesso que não há muitos dados disponíveis ao público sobre a carreira do autor, muito menos sobre sua vida antes de trabalhar.
Com a chegada de sua maioridade, João decidiu explorar sua intelectualidade ao extremo. Ele passou a analisar mais de perto as obras de seus próprios primos, Manuel Bandeira e Gilberto Freyre, e a frequentar o Café Lafayette, local em que muitos poetas e sociólogos se reuniam. Como resultado e por difusão facilitada (sim, o que mais serve nesse caso é um conceito de biologia), três anos depois ele se apresentou como poeta pela primeira vez no Primeiro Congresso de Poesia do Recife, lendo seu opúsculo "Considerações sobre o Poeta Dormindo", que não obteve sucesso. No ano seguinte, ele se mudou para o Rio de Janeiro e lançou sua primeira coletânea poética, "Pedra do Sono", cujo poema titular está exposto a seguir:
"Meus olhos têm telescópios
Espiando a rua.
Espiando a alma
Longe de mim mil metros.
Mulheres vão e vêm nadando
Em rios invisíveis.
Automóveis como peixes cegos
Compõem minhas visões mecânicas.
Há 20 anos não digo a palavra
Que sempre espero de mim:
Ficarei indefinidamente contemplando
Meu retrato eu morto."
De primeira vista, esse poema realmente não parece nada com um do poeta engenheiro. O ritmo está presente, mas não tanto quanto o das rimas produzidas na história de Severino. Temos também a objetividade marcante da magnum opus, porém dessa vez com um aspecto surrealista. As características que surgem nesse poema e que permanecem em toda a obra de João são o racionalismo e a construção intrigante e precisa de uma imagem que nos transmite exatamente a emoção sentida pelo poeta, essa sendo semelhante ao tipo de sentimento que muitas vezes não pode ser descrito por termos ou palavras extravagantes de dicionário. Ademais, é exatamente por isso que o autor sempre utiliza uma linguagem simples e coloquial. Contrariamente aos parnasianos, ele tem talento o suficiente para emitir mensagens simples ou complexas sem métrica perfeita ou até mesmo com a ausência de uma gramática impecável.
Quando começava a obter reconhecimento e a fazer amizade com outros artistas, João passou em um concurso público e iniciou sua carreira político-diplomática no Departamento de Administração do Serviço Público do Rio de Janeiro, permanecendo lá até 1945, quando passou em outro concurso e passou a representar o Brasil diplomaticamente em outros países. Ainda que com um trabalho muito agitado, ele não deixou de escrever em momento algum. No mesmo ano, é lançada sua segunda coleção de poemas, "O Engenheiro", cujo poema titular, como tradição na carreira do autor, foi o mais célebre. Um trecho dele está exposto aqui:
"A luz, o sol, o ar livre
envolvem o sonho do engenheiro.
O engenheiro sonha coisas claras:
superfícies, tênis, um copo de água.
O lápis, o esquadro e o papel:
o desenho, o projeto, o número:
o engenheiro pensa o mundo justo,
mundo que nenhum véu encobre."
O engenheiro citado é, claramente, a representação de todo ser humano que deseja (pasme!) um mundo mais humano. Entretanto, outra interpretação interessante seria a de que João chama a si mesmo de engenheiro: com o lápis e o papel na mão, tanto na diplomacia quanto na poesia, ele luta por um mundo mais justo. De qualquer modo, é notável que o poema é uma sutil chamada para a ação. Outrossim, observamos que é aí que João passa a incluir não só questões espirituais, como também sociais em seus escritos. A partir daí, ele lançou cada vez mais livros e foi agraciado com condecorações como o Prêmio José de Anchieta e o Prêmio Olavo Bilac.
E foi assim, no auge de sua carreira, que surge sua obra-prima. "Morte e Vida Severina" chegou nas livrarias em 1955 e, apesar de o público da época ter estranhado a escolha de contar uma história tão grande em verso, foi recepcionado excelentemente. Não demorou para que a obra fosse adaptada em várias mídias.
O livro nos conta, em primeira pessoa, a história de Severino, um retirante em êxodo rural que está migrando para a capital de Pernambuco, a linda e próspera Recife. Ele se depara com a morte em inúmeras formas durante sua viagem, mas mesmo assim ela nunca consegue o aprisionar. Severino descobre que tudo gira em torno dessa entidade, de empregos a fenômenos simples da natureza. Logo, ele reflete sobre seu sofrimento e quase tira a sua própria vida. No entanto, ele felizmente conclui que a vida vale a pena ser vivida mesmo que difícil, já que podemos encontrar a felicidade em momentos simples como o nascimento de um bebê e em elementos por vezes ignorados, como o verde vibrante das folhas da Zona da Mata.
Ao final de sua vida, assim como Severino, João Cabral de Melo Neto lutou contra a depressão. Com o apoio de sua esposa e filhos, ele não deixou que esse sentimento tomasse conta de seu coração por completo. Ele morreu aos 79 anos devido a um infarto. Termino esse artigo com o recado mais forte que ele nos deu:
" - Severino retirante,
deixe agora que lhe diga:
eu não sei bem a resposta
da pergunta que fazia,
se não vale mais saltar
fora da ponte e da vida;
nem conheço essa resposta,
se quer mesmo que lhe diga;
é difícil defender,
só com palavras, a vida,
ainda mais quando ela é
esta que vê, severina;
mas se responder não pude
à pergunta que fazia,
ela, a vida, a respondeu
com sua presença viva.
E não há melhor resposta
que o espetáculo da vida:
vê-la desfiar seu fio,
que também se chama vida,
ver a fábrica que ela mesma,
teimosamente, se fabrica,
vê-la brotar como há pouco
em nova vida explodida;
mesmo quando é assim pequena
a explosão, como a ocorrida;
mesmo quando é uma explosão
como a de há pouco, franzina;
mesmo quando é a explosão
de uma vida severina."
-Artigo por Ana Ferreira da Motta Costa
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