Augusto dos Anjos: o poeta da morte
- Pugna!
- 13 de dez. de 2020
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Você se lembra de quando o ex-ministro da saúde Luiz Henrique Mandetta comentou, no início da pandemia, que "a mão que afaga é a mesma que apedreja"? A comoção enorme causada por esse comentário é devido a ele ser não da autoria de Mandetta ou de qualquer outro poeta, mas sim de ele ser da obra de Augusto dos Anjos, conhecido em círculos literários como o poeta da morte. Com apenas uma coletânea lançada, tal poeta iniciou o movimento do modernismo no Brasil e chocou milhares de leitores com sua escrita visceral. Quer saber mais acerca desse sujeito tão interessante? Então vem comigo.
O paraibano Augusto de Carvalho Rodrigues dos Anjos nasceu no dia 22 de abril de 1884 no Engenho de Pau d'Arco, atual município de Sapé. Seu pai, Alexandre, foi seu professor particular durante todo o ensino fundamental. Como muitos poetas, cresceu solitário, observando a decadência do ambiente no qual vivia e a agonia das pessoas com quem morava. Isso, entre outros fatores, fez com que ele começasse a escrever seus primeiros versos aos sete anos. Para cursar o ensino médio, os pais o matricularam no Liceu Paraibano, colégio renomado da época. Nesse ínterim, em 1900, ele escreveu seu primeiro soneto oficial, intitulado "Saudade":
"Hoje que a mágoa me apunhala o seio,
E o coração me rasga atroz, imensa,
Eu a bendigo da descrença em meio,
Porque eu hoje só vivo da descrença.
À noite quando em funda soledade
Minh'alma se recolhe tristemente,
Pra iluminar-me a alma descontente,
Se acende o círio triste da Saudade.
E assim afeito às mágoas e ao tormento,
E à dor e ao sofrimento eterno afeito,
Para dar vida à dor e ao sofrimento,
Da saudade na campa enegrecida
Guardo a lembrança que me sangra o peito,
Mas que no entanto me alimenta a vida."
A lembrança que sangra o peito e o alimenta: o resquício nebuloso e quase esquecido de quando era sentida a felicidade. Com apenas 16 anos, Augusto conseguiu representar exatamente o que é sentido por muitos jovens de todas as épocas, nacionalidades e personalidades possíveis. Ele coloca em papel, de maneira mais refinada e lírica, o sentimento da inércia: a sensação de que não é possível deixar a infelicidade e a depressão; a pausa permanente em uma vida que devia ser recheada de emoções intensas, porém uma única emoção se sobressai e nunca abandona o coração. Reconhecendo isso e tentando lidar com tal sentimento, o autor decreta, de forma desesperançosa e descrente, que a única alternativa é sentir saudade da alegria e segurá-la.
Três anos depois, em 1903, ele passou a estudar na Faculdade de Direito do Recife, entretanto, logo após se formar, ele desistiu da carreira jurídica e se voltou para a literatura e o jornalismo, como padrão de diversos poetas modernistas. Por que ele tomou essa decisão, você se pergunta? Para mim já é um tanto óbvio, mas deixarei que o Professor Keating, de Sociedade dos Poetas Mortos, responda para você: "Medicina, lei, negócios e engenharia são ocupações nobres para manter a vida. Mas poesia, beleza, romance e amor são as únicas razões que justificam viver".
Lecionando literatura e escrevendo para jornais em João Pessoa, ele conheceu Ester Fialho em 1910 e casou-se com ela. Em busca de um lar estável e longe dos desentendimentos políticos de Augusto, eles se mudaram para o Rio de Janeiro. Lá, ele ensinou em tempo integral em colégios e cursos renomados, sendo requisitado pelo maior colégio da época, o Pedro II. E a vida dele se manteve assim, monótona, até que ele decidiu lançar sua única obra em 1912: "Eu", composta por 58 poemas de linguagem simultaneamente agressiva, clássica, científica e ácida. Vamos analisar dois dos textos mais famosos e chocantes do escritor.
Psicologia de um vencido
"Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênese da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.
Profundissimamente hipocondríaco,
Este ambiente me causa repugnância…
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que se escapa da boca de um cardíaco.
Já o verme — este operário das ruínas —
Que o sangue podre das carnificinas
Come, e à vida em geral declara guerra,
Anda a espreitar meus olhos para roê-los,
E há-de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra!"
Nesse soneto, é feito um paralelo entre a decomposição literal de um cadáver e a decomposição ética e moral da alma de um indivíduo dado como insignificante e diferente. Desde o começo, o poeta explica o fardo de ser complexo em meio à aparente superficialidade: ele se habitua tanto na escuridão quanto na luz cintilante (rutilância) e é formado por um elemento e uma substância quimicamente diferentes, o amoníaco e o carbono. Criticamente, na estrofe seguinte, ele se compara a um hipocondríaco, alguém com um pequeno problema de saúde que pensa sofrer um impasse maior do que ele realmente é. Essa parte é especificamente intrigante pois nela está contido um comentário bastante sutil acerca da relação entre a saúde mental e as percepções sociais. O eu lírico é levado a pensar que sua ansiedade e sua depressão, mesmo o destruindo por dentro como um infarto, não importam, fazendo com que ele veja a si mesmo como hipocondríaco: alguém exagerado, obcecado e, segunda a maioria, louco. Já o verme, representante dos insensíveis, se alimenta do sofrimento por entretenimento e não ajuda o comido de forma alguma, causando a sensação estarrecedora de que o alimento não está lutando somente contra si e a sociedade, mas também com a vida e o universo em geral. Assim, ele é abandonado, sem nada, em meio à maldade humana. Infelizmente para os leitores de coração frágil, o próximo poema também expõe nossos sentimentos mais profundos, aqueles que nos fazem sentir dentro da clássica gaiola de pássaro.
Solitário
"Como um fantasma que se refugia
Na solidão da natureza morta,
Por trás dos ermos túmulos, um dia,
Eu fui refugiar-me à tua porta!
Fazia frio e o frio que fazia
Não era esse que a carne nos contorta...
Cortava assim como em carniçaria
O aço das facas incisivas corta!
Mas tu não vieste ver minha Desgraça!
E eu saí, como quem tudo repele,
- Velho caixão a carregar destroços -
Levando apenas na tumba carcaça
O pergaminho singular da pele
E o chocalho fatídico dos ossos!"
Similarmente à música "my tears ricochet", do álbum folklore da cantora Taylor Swift, o eu lírico se dirige a alguém com quem teve uma relação intensa, seja ela amorosa ou profissional, que provavelmente acabou devido a um desentendimento, mas que afirma ainda ter consideração ao eu lírico. Comparado a um fantasma, o qual assombra aqueles que o fizeram mal, em busca de conforto em meio à vingança, o narrador tenta reatar seus laços com alguém para obter o acolhimento mínimo para continuar sobrevivendo. Ferido pelo frio e em uma espera agonizante, ele morreu desiludido com o que pensava ser amor ou amizade.
Augusto dos Anjos não sofreu dessa forma exata nos meses que antecederam sua morte, em 1914. Ele morreu de pneumonia no que devia ser o meio de uma vida e uma carreira brilhante. Ele plantou a semente modernista, que só floresceu bem depois de sua morte, em 1922. No entanto, ele e seu legado continuarão sendo, dentro e fora de círculos literários, excelentes iniciantes da formação do movimento artístico mais influente da história da arte brasileira.
-Por Ana Ferreira da Motta Costa
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