Anne Brontë e Agnes Grey: série irmãs Brontë - parte dois
- Pugna!
- 20 de nov. de 2020
- 7 min de leitura
No segundo artigo dessa série, será analisada a vida da mais jovem Brontë, Anne, vista por muitos críticos como sucessora digna da grande Jane Austen, mesmo com apenas dois livros e pouquíssimos poemas lançados. Se interessou pela história dessa autora excelente? Então vem comigo e pega um chá de cidreira, pois temos muito o que discutir!
Começo com um spoiler essencial: Anne foi, entre o trio de irmãs escritoras, a que morreu mais jovem e a mais nova. Tal fato, entre outros, causa a ausência de informação acerca de sua vida, o que me fez, como escritora, pesquisar intensamente sobre ela para que este artigo não ficasse minúsculo, visto que quase todo o contexto da criação das irmãs já foi relatado no primeiro artigo. Portanto, querido leitor, tentarei ser o mais detalhista possível, sem causar repetições e o fim repentino de sua curiosidade.
Anne Brontë nasceu no dia 17 de janeiro de 1820 em Thornton, assim como seus irmãos mais velhos. O que seguiu esse nascimento foi tragédia após tragédia, mas graças à leitura e à imaginação, Anne não teve uma infância triste por completo. Devido à morte das duas Brontë mais velhas, em virtude de uma gripe contraída em um ambiente escolar, Anne sempre foi educada em casa pelo pai e pela tia Elizabeth. Essa última, por sua vez, tinha Anne como sua sobrinha favorita e dividia um quarto com ela, o que evidentemente influenciou a personalidade e as crenças da escritora. Em seu tempo livre, ela criava mundos mágicos repletos, ironicamente, de problemas do mundo real junto a seus irmãos.
Em 1831, ela se juntou a Emily e criou Gondal, um mundo fantástico em que princesas e cavaleiros se comunicavam através da poesia. A maior parte dos manuscritos encontrados desses poemas, quase incompreensíveis, é da autoria de Emily. Todavia, os relatos de Charlotte revelam que todos os poemas foram idealizados em conjunto e que os escritos por Anne foram provavelmente destruídos. Quatro anos depois, em 1835, Anne substituiu Emily como pupila de Charlotte na escola de Roe Head. Ao contrário de Emily, ela passou dois anos lá, fez amigos e era uma aluna dedicada, reconhecida pela instituição com medalhas de honra, porém totalmente negligenciada por Charlotte. No fim de sua estadia no internato, ela sofreu gravemente de gastrite, o que fez a irmã mais velha ter senso o bastante para finalmente se importar com ela. Nesse ínterim, Anne fazia sua transição para a fase adulta e, consequentemente, sua personalidade mudou bastante: ela era boa na escola não por prazer, mas porque sentia um senso de obrigação e pressão vinda de sua família e deixou de acreditar no que o pai tinha a ensinado acerca de religião e passou a ver Deus como um governante justiceiro, e não como pai generoso. Ainda assim, escrever continuou sendo seu refúgio. A evolução da escritora fica evidente em um poema feito por ela em 1847, exposto a seguir:
"The mist is resting on the hill;
The smoke is hanging in the air;
The very clouds are standing still:
A breathless calm broods everywhere.
Thou pilgrim through this vale of tears,
Thou, too, a little moment cease
Thy anxious toil and fluttering fears,
And rest thee, for a while, in peace. "
"I would, but Time keeps working still
And moving on for good or ill:
He will not rest or stay.
In pain or ease, in smiles or tears,
He still keeps adding to my years
And stealing life away.
His footsteps in the ceaseless sound
Of yonder clock I seem to hear,
That through this stillness so profound
Distinctly strikes the vacant ear.
For ever striding on and on,
He pauses not by night or day;
And all my life will soon be gone
As these past years have slipped away.
He took my childhood long ago,
And then my early youth; and lo,
He steals away my prime!
I cannot see how fast it goes,
But well my inward spirit knows
The wasting power of time."
("A névoa está pousando na colina;
A fumaça está pairando no ar;
As próprias nuvens estão paradas:
Uma calma sem fôlego se espalha por toda parte.
Tu peregrino através deste vale de lágrimas,
Tu, também, um pequeno momento cessa
Tua labuta ansiosa e medos esvoaçantes,
E descanse, por um tempo, em paz. "
"Eu faria, mas o tempo continua trabalhando
E indo para o bem ou para o mal:
Ele não vai descansar nem ficar.
Na dor ou na facilidade, em sorrisos ou lágrimas,
Ele ainda continua aumentando meus anos
E roubando vida.
Seus passos no som incessante
Do relógio que eu pareço ouvir,
Que através desta quietude tão profunda
Atinge distintamente o ouvido vazio.
Para sempre avançando e avançando,
Ele não faz uma pausa durante a noite ou o dia;
E toda a minha vida logo irá embora
À medida que esses últimos anos foram passando.
Ele tirou minha infância há muito tempo,
E então minha juventude; e eis,
Ele rouba meu primo!
Eu não consigo ver o quão rápido isso vai,
Mas bem, meu espírito interior sabe
A perda de tempo. ")
Esse longo poema, entitulado "Self-Communion" ( "Auto Comunhão"), nos dá a lente necessária para observar a relação de Anne com Deus, com a vida e com o tempo. Para ela, essas "entidades" roubam e não são generosas, o completo oposto do que é dito nos ensinamentos da Igreja Católica. Analogamente, no famoso "Capitães da Areia", o futuro padre Pirulito afirma, em pensamento, temer a figura divina e ao mesmo tempo amá-la. Para ele, um humilde morador de rua, Deus é vingativo e castiga a todos que pecam, largando mão das circunstâncias em que o pecado foi cometido, e nos dá de presente fenômenos lindos e perfeitos, como a cor serena e bela do céu e o desabrochar das flores de um jardim. Porém, diferente de Pirulito, Anne crê somente no lado negativo da religião... E não podemos culpá-la ou julgar sua opinião como certa ou errada. A vida solitária, pobre, isolada, vivida quase inteiramente no pântano e apreciada somente durante viagens literárias certamente a fez ter menos esperança no mundo em geral. Infelizmente, como vamos ver agora, Anne não teve experiências que a fizeram mudar de opinião tão cedo.
Aos 19 anos, educada e madura, Anne procurou por emprego para ajudar o pai e a tia. Ela foi aceita como governanta pela família Ingham, na mansão Blake Hall. As crianças de que tinha de cuidar eram desobedientes e rudes, mas ela não desistiu. Ela ficou lá por um ano, se esforçando para educar as crianças e a fazê-las respeitarem-na, porém foi demitida perto do Natal pela falta de resultados. Essa desventura é vista pelos críticos como fonte de inspiração primária para "Agnes Grey", que também se trata da vida de uma governanta em uma família complicada, todavia discorreremos mais acerca dessa história em específico daqui a pouco.
De volta à casa onde cresceu, Anne se deparou com uma companhia inesperada. Seu pai, o pastor local, tinha se tornado mentor de William Weightman, um jovem recém-formado em teologia. Nessa época, Anne escreveu inúmeros poemas de amor para um admirado secreto, e muito indica que esse seja William. O grande debate entre críticos se dá a partir da seguinte dúvida: se os poemas escritos por Anne representam os sentimentos dela própria ou dos personagens de Gondal. Não há nenhuma evidência concreta de que ela esteve apaixonada, tirando um bilhete escrito por Charlotte e o poema "I will not mourn thee, lovely one" ("Não sofrerei por você, amado"), escrito em 1842, mesmo ano em que William morreu de cólera, no qual Anne expressa suas emoções ao perder um homem querido. O que é certo é que ele serviu de inspiração para o interesse amoroso da protagonista de "Agnes Grey", que em sua maioria reflete as experiências da escritora.
Em busca de um novo emprego, Anne decidiu tentar ser governanta novamente com a família Robbins, que continha quatro crianças. Dessa vez, ela teve uma experiência mais agradável e feliz. Ela passou seis anos com os Robbins ( de 1840 à 1845) e os acompanhou em viagens, que as deram a gota final de inspiração para escrever "Agnes Grey". Mas no final, nem tudo foi flores. Nos seus últimos três anos na residência, Anne recomendou que Branwell, seu irmão mais velho, assumisse o emprego de tutor das crianças. Contudo, enquanto trabalhava lá, ele teve um irresponsável caso com a mãe das crianças, o que fez com que Anne se demitisse por se sentir culpada e envergonhada. Logo depois, Branwell foi demitido pelo patriarca da família.
A partir desse momento, com somente mais quatro anos restantes de vida, Anne se dedicou à escrita. O manuscrito de "Agnes Grey" foi terminado em julho de 1846, e, mesmo sendo publicado em conjunto com "Morro dos Ventos Uivantes", de Emily, e "Jane Eyre", de Charlotte, no ano seguinte, a obra foi ofuscada e vista como insignificante quando comparada aos livros das irmãs. Injusto, para dizer o mínimo.
"Agnes Grey" conta a história de Agnes, uma menina pobre e filha de um pastor (assim como a autora), que é considerada fraca e inútil por ser a mais jovem da família e que, em um momento de fragilidade econômica, decide procurar emprego. Grande parte do resto é exatamente igual à vida de Anne: ela consegue um primeiro trabalho de governanta em uma família abusiva e cruel e sai de lá em menos de um ano, então, em seguida, ela passa a trabalhar para uma família milionária com quatro crianças; dois meninos, que estudam em um internato, e duas meninas. Lá, a personagem é tratada de maneira melhor, mas ainda assim é usada e ignorada pelas meninas. Nas redondezas, ela conhece um pastor chamado Mr. Weston, que a dá flores e rapidamente se apaixona por ela. O sentimento é recíproco. Porém, a situação se atrapalha um pouco quando o pai dela morre no interior antes de ela conseguir se despedir. Com isso, Agnes decide se mudar para sua terra natal, deixando Weston para trás. Algum tempo depois, eles se reencontram, casam e têm três filhos. Claro, isto é apenas um pequeno resumo, há outros detalhes e personagens, mas o que eu queria mostrar para você, leitor, é que essa obra é, essencialmente, a história de Anne com o final feliz que ela nunca teve.
A recepção do livro, como dito anteriormente, não foi exatamente boa: para os críticos, era "apenas" mais uma história de mulher. Felizmente, o próximo e último livro dela, "The Tenant of Wildfell Hall" ("A Inquilina de Wildfell Hall"), ainda sendo outra história sob a perspectiva feminina, foi louvada pelas mulheres da época por questionar os valores vitorianos. E é isso que mais importa: ser reconhecido por seu público alvo e querido.
No dia 28 de maio de 1849, Anne faleceu em razão da influenza, intensificada pela morte ainda recente de Emily, sua irmã mais querida. Nunca saberemos se Anne realmente seria a próxima Jane Austen se tivesse mais tempo de vida, no entanto, podemos ter a certeza de que para os reais amantes da literatura, o nome dela estará sempre ao lado de outros como Oscar Wilde, Charles Dickens e Thomas Hardy.
-Por Ana Ferreira da Motta Costa
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