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Anne With an E: O papel da indústria cinematográfica na luta por justiça

  • Foto do escritor: Pugna!
    Pugna!
  • 17 de mai. de 2020
  • 8 min de leitura

Atualizado: 18 de mai. de 2020

Como estudante de cinema, ao assistir Anne With an E, vejo uma das minhas maiores inspirações. Não apenas pelo roteiro, atuação, direção, fotografia, trilha sonora e edição serem absolutamente impecáveis, mas pela forma como pautas tão necessárias são abordadas num contexto do final do século 19. É fascinante ver como os ideais progressistas da tagarela e sonhadora Anne Shirley-Cuthbern, ao mesmo tempo que causam as maiores confusões, mudam a pequena cidade de Avonlea para melhor.


A história começa quando os irmãos Marilla e Matthew decidem adotar um garoto para ajudar na fazenda. Porém, por um erro do orfanato, quem eles encontram é Anne. Uma garotinha de 13 anos com um ruivo vivo e várias sardinhas, mas que de cara conquista o coração do gentil Matthew. Marilla, mais prática, enxerga o óbvio problema: quem ajudaria na fazenda¿ Após discussões e várias tentativas de se provar capaz de fazer os mesmos deveres que um menino faria, Anne tem de ir embora. Calma lá! Acontece que apesar do pouco tempo, o jeito peculiar de Anne marcou o suficiente para amolecer seus corações. Matthew a traz de volta para o que enfim ela poderia chamar de casa.


Assim, essa série já começa com a necessária pauta do machismo, que por sinal é explorada ao longo de todo o seu curso, das formas mais óbvias às mais discretas. É interessante ver como o uso de sensatez e sensibilidade pela roteirista Moira Walley-Beckett consegue nos mostrar o nascimento do que hoje é o movimento feminista. E vai além, nos mostra a importância dele, de forma que vemos quão diminuídas e menosprezadas eram as mulheres. Válidas apenas se casassem, e se o fizessem eram dependentes do marido em absolutamente tudo. Casamentos por dinheiro ou status eram regra, ainda que houvesse esperança para o amor. Acho interessante também o debate do privilégio, pois uma das personagens ao pedir seu dote ao pai e ver seu pedido negado, é então questionada por sua irmã mais nova: “O que há de tão errado com o status quo¿ Ele nos dá belos vestidos e um teto para morar sem que tenhamos que levantar um dedo”. Mas a questão é: e se quisermos nos levantar¿ Nos erguer por nós mesmas, sem a necessidade de um marido. Indo além dessa questão: e quem não consegue se levantar nesse sistema¿ É um discurso maior do que o de gênero. Analisemos classe e cor. Pobres. Negros. Indígenas.


A série, que começa com um elenco branco e assim prossegue por toda a sua primeira temporada consegue encaixar de forma natural personagens negros interessantíssimos na sua segunda temporada. Somos introduzidos ao ambicioso Bash, que não pôde ser criado por sua mãe, pois ela era empregada doméstica de uma família branca. Com isso, cresceu vendo-a criar os filhos dos outros e sempre se sentindo deixado de lado. Apesar da infância difícil, foi resiliente. Conhece Gilbert e se muda com ele para Avonlea, tornando-se a primeira pessoa negra a morar na pequena cidade. É claro, gerando um grande espanto em seus moradores, mas acha conforto no apoio de Gilbert, Anne e sua família. É nesse momento que Anne With ao E ganha um elenco mais diverso. Bash nos mostra o gueto, majoritariamente negro, e antes nunca mencionado. Com isso, surgem personagens como Mary, que viria a se tornar sua esposa e mãe de sua filha Delphine. É memorável notar como a história se desenvolve sutilmente, desconstruindo os preconceitos dos próprios personagens.


Na terceira temporada, logo em seu primeiro episódio, é introduzida uma tribo indígena e o preconceito dos moradores de Avonlea, descendentes de europeus. Vistos como selvagens, a história se aprofunda no olhar preconceituoso e eurocêntrico em contraste com a perspectiva maravilhada de Anne, que logo faz amizade com uma garota indígena chamada Ka’kwet. Personagem esta que recebe muito destaque na última temporada. Ao escolher ir a uma escola para aprender sobre os novos moradores de suas terras e poder conviver de forma mais harmônica, ela não fazia ideia da infeliz realidade que a esperava. Lá, o principal objetivo era catequisar as crianças, que ainda podiam ser “salvas”, caso destruído o lado “selvagem”. Com isso, Ka’kwet teve seus lindos cabelos longos cortados, recebeu um novo nome cristão (Hannah), e não tinha nenhum espaço para expressão. Apanhava por discordar e era presa na escola como prisão. Ao finalmente conseguir fugir, volta à sua aldeia. Entretanto, representantes da “escola” invadem sua vila e a sequestram, inclusive atirando em seu pai. Apesar de seus pais terem idos atrás delas e sido expulsos do local, seu futuro na série acaba de maneira incerta. O público não recebe consolo e a única certeza é que Ka’kwet, mesmo que resgatada, nunca será a mesma dados os traumas.


Agora que já abordamos as principais questões raciais retratadas em Anne With an E, volto a pauta feminista. Primeiro porque foi a mais desenvolvida em todas as três temporadas. Segundo porque assim como Anne, sou mulher, e quase 150 anos depois vejo que algumas mentalidades continuam iguais, apesar de muito progresso no campo do direito. Os ideais de Anne, na época completamente radicais, causam espanto. Afirma que uma mulher se torna inteira não no momento em que se casa, mas no instante em que nasce. Inclusive, escreveu exatamente isso clandestinamente num artigo para o jornal, após sua colega de classe ter sido assediada. A reputação de Josie estava arruinada, mas a de Billy continuava impecável. Após ele espalhar a todos os seus amigos que tinham tido relações sexuais, pois ela não tinha conseguido esperar até o casamento, Anne o enfrenta. Indigna-se por ninguém acreditar em Josie e pior, culpando-a por estar sozinha com ele, como se isso justificasse o seu ato ou desse a ele direito de executá-lo. Numa atitude de impulsividade feita na calada da noite, imprime vários jornais e os coloca na porta da igreja para serem lidos pelos moradores no dia seguinte, um domingo. Apesar de não mencionar o nome da amiga, ela foge correndo da igreja. Na verdade, a sua escrita é um desabafo sobre a opressão que sofre pelo patriarcado. Seus questionamentos são válidos, e ela não se arrepende deles em momento algum. Ao colocar a mulher em igualdade com o homem, porém, ela provoca o conselho da cidade, que composto de quatro homens e uma mulher, decide censurar o jornal. Anne não deixa barato e organiza um protesto para mostrar que liberdade de expressão é um direito humano, e até mesmo Josie comparece. O conselho retalia, roubando a impressora e queimando a escola. Aí que entra a estrategista Rachel Lynde. Ao ouvir os relatos de Anne, tem certeza de quem esteve por trás desse ato covarde. Coloca o conselho contra a parede e o obriga a aceitar mais três mulheres, deixando os números por gênero iguais. Através dessas tantas experiências, vemos o poder de Anne na cidade, contagiando até mesmo o mais conservador dos espíritos. O nascer do movimento feminista na mente de uma criança que se pergunta “Mas por que eu devo esperar um príncipe me resgatar¿” numa época em que esse era o único sonho aceitável para uma garota.


É revigorante lembrar com Anne o efeito de uma só pessoa. O questionar eterno da nossa protagonista, que se intitula noiva da aventura. Seu desenvolvimento é enriquecedor à história porque, ao chegar à Avonlea, foi desprezada por seus colegas e vizinhos. Entretanto, ao deixá-la para adentrar a universidade, deixa marcas saudosas em vários corações. Os três maiores resultados disso eu vejo em três personagens: Diana (sua melhor amiga), Cole (seu melhor amigo) e Rachel (sua vizinha fofoqueira).


Comecemos então em ordem. Diana é filha de país riquíssimos. Assim, é esperado que se comporte de forma “adequada” para que case bem, sua principal função como mulher. Inclusive, os sonhos de sua mãe incluem uma escola de etiqueta em Paris. Porém, a chegada de Anne muda de forma gradativa seus conceitos. É interessante analisar a pré-adolescência de Diana comparada a de Anne. Em determinado momento da série, Anne se odeia. Odeia seu corpo, sua aparência. Seu maior desejo é ser linda, como Diana. Entretanto, o discurso da amiga sempre me comoveu. Diana preferia ser inteligente, como Anne, a ser bonita. Talvez por isso a amizade das duas seja tão forte. Diana vê em Anne a liberdade que sonha ter, mas com todas as regras a seguir não alcança. Inclusive, a leve inveja de Anne nos traz ao poder de padrões estéticos na mente de uma criança. Ela deseja tão intensamente ser reconhecida como bela que compra tinta preta para os cabelos. Infelizmente, as consequências foram tão drásticas que ela teve que cortá-los muito curtos. Sua dor é aumentada pelo ambiente escolar, onde o professor a chama de menino. Porém, voltando a Diana, seu senso de aventura foi excitado e a personagem nunca foi tão livre quanto na terceira temporada. Explora a cidade sem permissão dos pais, namora um menino pobre e foge de casa para fazer exames de admissão na faculdade, no qual passa. Encontra coragem, desafia seus pais e os pede, recebendo uma reação escandalosa como resposta, para ir à faculdade ao invés da escola de etiqueta. No fim, os convence e torna-se colega de quarto de Anne. Um final ideal para uma personagem que nos agrega tanto.


Ao abordarmos o personagem Cole, fugimos da pauta feminista para entrarmos na LGBTQ+. Porém, não podia deixar de mencioná-lo, visto que na segunda temporada teve tanto destaque. Cole é explorado com cautela e sensibilidade pela roteirista, que o desenvolve de maneira a fazer com que qualquer telespectador se apaixone. Por trás de um menino tímido, há um artista. Uma pena que além de não muito apreciado, é vítima de bullying constante por seus colegas de sala. Anne, ao enxergar a situação, torna-se um ombro amigo. Porém, sua amizade não basta para fazer com que as agressões diminuam. Aliás, um de seus colegas o derruba propositalmente da escada e o faz quebrar a mão, resultando na perda de suas habilidades de desenho. Por ser afeminado, era sempre a vítima dentro e fora da sala de aula. Ao ter um momento íntimo com seu professor, percebe que o docente também é homossexual. Logo em seguida, é vítima de agressões por ele e o enfrenta. “Se quer odiar alguém, sugiro que se olhe no espelho”. Esse então é o estopim para que abandone de vez a escola. A abordagem ao mundo LGBTQ+ ganha ainda mais força com a rica e progressista Tia Jo, quando faz uma festa que conta com a presença de Anne, Diana e Cole. Lá conhecemos um pouco mais de sua história com sua falecida companheira e do mundo secreto da comunidade, visto que homossexualidade era ilegal. Sua jornada na série encontram enfim um ponto estável quando decide morar com Jo e não mais voltar para casa, onde seria obrigado a trabalhar já que não estava na escola. De toda forma, Cole é um personagem com pautas importantíssimas na série, que agrega em história e em diversidade, além de ser muito cativante.


Por fim, apresento uma personagem que por muitas vezes tive dificuldade em suportar, mas que na última temporada me conquistou. Rachel Lynde define o próprio status quo, e o defende com unhas e dentes. Ela é o estereótipo da vizinha fofoqueira. Visita Marilla constantemente, sem convite algum, apenas para compartilhar rumores. Casada, teve dez filhos. Assim, vê sua vida como completa, enquanto acredita que Marilla nunca pôde conhecer a felicidade, pois não se casou. É a única mulher do conselho, e não tem papas na língua. Determinada, sempre consegue o que quer e ai de quem a desafiar. Com a chegada de Anne, foi a primeira a reclamar de sua ousadia e seu espírito atrevido. Apesar de a princípio ter visto Bash como empregado, desenvolveu uma relação de muito amor e companheirismo, ajudando-o bastante com sua filha após a morte da mãe. E para mim, seu momento de maior sucesso na série foi em sua emboscada política para adicionar três mulheres ao conselho. Ao olhar para Rachel, vejo que não tem personagem mais dotado para a política do que ela. O que é muito bem explorado pela série. Lembremos então que em pleno século 19, o último lugar que uma mulher estaria era nesse campo. Enfim, ressalto aqui o que foi uma das minhas amizades favoritas, a sua com a professora Muriel. Talvez por serem tão opostas, mas ainda assim Rachel a aceitar em todo o seu progressismo e diversidade. Não antes de quase a tê-la feito ser demitida e tentado arranjá-la um marido por inúmeras vezes, claro, mas deixemos isso de lado.


Então, se você ainda não assistiu Anne With na E, sugiro que mesmo após todos os meus spoilers, faça isso hoje mesmo. É uma série enriquecedora para a mente, que nos traz de volta á essência do feminismo e explora pautas tão necessárias. Apesar da minha tentativa, nem em um livro poderia traduzir quão significativas são suas cenas. Ao conhecer cada personagem, sinto que ganho um amigo. Ao assistir cada episódio, um aprendizado.

- Por Celi Mitidieri



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