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Autoverdade e Enganação: até onde vamos para estarmos certos

  • Foto do escritor: Pugna!
    Pugna!
  • 15 de out. de 2020
  • 4 min de leitura

Como o Diabo no conto machadiano de título: “A igreja do Diabo”, aquele que pratica a autoverdade é aquele que nega, que expõe as suas crenças sem se preocupar com nenhum amparo científico ou até mesmo com uma argumentação razoável, simplesmente para ser favorecido numa situação. É quem se utiliza da clássica perspectiva weberiana de dominação carismática legitima, se fazendo valer do afeto que o seu público nutre por si para fins de convencer sem fazer refletir, apoiando-se em um estado de inercia social: pensar é cansativo, o mais prático é tomar o que é dito como dogma. Tal qual nos é explicado no livro “Rápido e Devagar: Duas Formas de Pensar” do conceituado economista comportamental Daniel Kahneman, é fácil aceitar sem pensar, principalmente se a informação vem de alguém em quem confiamos, pois assim gastamos menos energia com uma informação que tomamos como certa, o perigo, infelizmente, mora aí.

Foi assim como Bill Clinton e sua promiscuidade no tão famoso “escândalo Lewinsky”, o ex-presidente americano negou veementemente ter praticado relações sexuais com a sua secretária, Monica Lewinsky, após a confirmação de que de fato o fez, ele veio a público para afirmar que: “sexo oral não é relação sexual”. As estratégias do ex-presidente Bill Clinton foram sempre ardis, com estratagemas de negação e omissão, ele se utiliza das meias verdades e de conceitos que só satisfazem a si e seus apoiadores como defesa, a exemplo do caso em que já foi perguntado se o próprio já havia fumado maconha,sua resposta: “Não quebrei as leis de meu país” – o curioso é que estava em Londres quando o fez. A enganação existe na sutileza, os mais antigos já diziam: “o diabo mora nos detalhes”. A autoverdade no cenário brasileiro está presente quando o presidente, que se apoia em uma base fiel e cega, afirma de forma convicta que: “não há fome no Brasil”, uma afirmação tão descabida que a primeira reação possível se torna a perplexidade. Seus eleitores se contentaram com essa afirmação sem embasamento e a trataram como um discurso a ser reproduzido. Tal qual o discurso reproduzido pelo rebanho de ovelhas no livro “A revolução dos bichos” de George Orwell – não há necessidade de pensar, adote um lado, e quem não estiver a seu favor será seu inimigo.


Da mesma forma que age o demônio do conto de Machado de Assis, nós continuamos negando nossos problemas, como se tal qual um coelho na cartola ele fosse desaparecer. Negar a fome não é solução para os famintos, negar a falta de moradia não constrói casas, negar a ampla desigualdade social que miseravelmente se reflete na saúde, na educação e nos pratos de nossa população não torná-la-á inexistente. 

A manipulação da vontade através da informação sempre foi parte do mundo, no séc. III a.C., a escola filosófica sofista, buscava criar uma retórica com a intenção de enganar, de fazer as pessoas concordarem com o que quer que dissessem, gerando uma ilusão da verdade pura e simples. “Nero pôs fogo em Roma”, essa afirmação foi dita na época do incêndio na parte antiga de Roma, em 64 d.C., possivelmente pelos católicos, que eram perseguidos rigorosamente pelo governo, o fato é, apesar da incerteza da causa do acontecimento a informação é passada até hoje, 20 séculos depois. Contudo, as piores formas de enganação são as que partem de nós mesmos, pois como diria o ditado: “De boas intenções o inferno está cheio.”. Como exemplo desses autoconvencimentos e dessa perpetuação do fato controverso há: a favorável interpretação dos fatos, que busca distorcer a verdade pura por uma versão que atenda aos seus interesses, comumente dando ênfase em ocorrências secundárias, mas que corroboram uma versão; a auto ilusão, que não se sustenta na definição formal de mentira pois o interlocutor acredita piamente no que diz e, por fim a economia da verdade, quando inconscientemente ou não selecionamos o que dizemos, omitindo o essencial à verdade.


Também existem as crenças, a concepção ficcional de um passado muito mais glorioso que a atualidade, a memória,que promove uma retrospectiva idílica do passado, é guiada pelo presente, por indivíduos ou grupos, carrega julgamentos morais, os quais podem ser alterados dependendo da época e do interesse pessoal de quem as cita. Tal concepção não é recente, os romanos já definiam muito bem isso, memoria praeteritorum bonorum, o passado é sempre bem lembrado. É comum que, por parte da população menos instruída, não haja diferenciação entre memória e história, porém, apesar desta tomar aquela como referência, ela é uma ciência e tem bases metodológicas. É importante cuidar também para que, frente a tantas dificuldades no estudo dessa ciência não caiamos na falácia do historiador, no anacronismo. É quando olhamos para o passado com a visão do hoje e esquecemos que todos nós, em todas as nossas peculiaridades, somos o produto do ontem. É possível exemplificar a periculosidade dessa situação com o famoso bug do milênio, quando detectado o problema nos computadores mundiais, mais de 100 bilhões de dólares foram investidos para mitiga-lo, centenas de técnicos e profissionais se empenharam para que não houvesse danos, hoje, com 20 anos disso passado, lembramos da situação como histeria, como se não houvesse ocorrido nada para se preocupar.

Em suma, vivemos, segundo Zygmunt Bauman, em tempos líquidos nos quais as relações interpessoais e o rigor científico se perdem cada dia mais, a verdade se dilui na liquidez da sociedade. Um historiador é versado a falar do passado, não deveria, ao menos em tese, tentar prever o futuro. Contudo, na minha humilde posição de redator eu me atrevo a perguntar, talvez um pouco cinicamente: o que ocorrerá com a situação do covid-19? Quando governantes muito mais cínicos que esse humilde redator culparem os precavidos pela inaptidão que lhes pertence, nós nos lembraremos? Até onde vamos para estarmos certos?

O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,

Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia

Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia

​​​​​

Fernando Pessoa, Alberto Caieiros 


Por: Gabriel Tôrres

Referências Bibliográficas

• El País, Doente de Brasil

• El País, Bolsonaro e a autoverdade 

• Jus.com, Os três tipos de dominação legítima de Max Weber

• Nerdologia, Antigamente é que era bom

• Leitura ObrigaHistória, Qual a diferença entre memória e história

• Mundo Estranho, Porque Nero mandou pôr fogo em Roma?

• Multiplesclerosis, The dangers of rosy retrospection 

• Modernidade Líquida, por Zygmunt Bauman

Recomendações de Leitura:

• A igreja do Diabo, por Machado de Assis

• Rápido e Devagar: Duas Formas de Pensar, por Daniel Kahneman 

• A Máquina do Ódio, por Patrícia Campos Melo

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