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Cecília Meireles: à frente de seu tempo, mas olhando para trás

  • Foto do escritor: Pugna!
    Pugna!
  • 16 de out. de 2020
  • 8 min de leitura

Considerada a maior poeta brasileira, Cecília Meireles se destacou no século XX, especialmente no período do Estado Novo, por ser tão rebelde e única a ponto de não se encaixar em nenhuma escola literária. Quer conhecer mais um pouco acerca dessa poeta incrível, sozinha e cercada por homens no âmbito literário? Então vem comigo, porque tenho muito a te contar.

Eu gostaria de começar esse artigo com duas espécies de disclaimers, duas justificativas. A primeira é que não vou, em nenhum momento desse artigo, chamar Cecília de "poetisa", pois ela mesma combateu o uso dessa palavra devido à sutil discriminação de gênero nela contida, portanto a chamarei de poeta. A segunda é que temos que ter em mente que não estamos tratando de uma escritora puramente modernista ou simbolista, irônica ou intimista, e sim de alguém cuja obra não se encaixa em nenhuma categoria por causa de sua diversidade temática e estilística, uma reflexão direta das várias facetas da personalidade de Cecília. Logo, vamos à história.

Cecília Benevides de Carvalho Meireles nasceu no dia 7 de novembro de 1901, no bairro histórico de Rio Comprido, longe do centro do Rio de Janeiro. Sua mãe era professora e seu pai funcionário de banco, o que daria a mim, escritora um tanto sagaz, chance de fazer uma analogia entre essa profissão e "Meus Sete Anos", de Oswald de Andrade, porém isso não é possível nesse caso. O pai dela morreu três meses antes do começo de sua vida, deixando Mathilde, sua esposa, sozinha com o bebê. Triste pela morte do marido e pela perda de três filhos antes da vinda de Cecília, Mathilde morreu aproximadamente três anos após o parto. Com isso, a guarda de Cecília ficou com sua avó materna, Jacinta, uma senhora portuguesa bastante católica, que a levava para aulas de canto e de violino, além de exigir que a babá da criança, Pedrina, a contasse histórias toda noite. Essa criação rigorosa rendeu a Cecília não só solidão e silêncio, características que ela posteriormente reconheceu como essenciais para a construção de seu caráter, como também uma inteligência aguçada e perfeccionismo, o que fica evidente no decorrer de sua vida.

Ao finalizar seu ensino fundamental menor na Escola Municipal Estácio de Sá, o próprio príncipe dos poetas, Olavo Bilac, a concedeu a "Medalha de Ouro Olavo Bilac", prêmio seletivo dado a estudantes que se destacavam tanto na área de linguagens quanto nas ciências, categoria em que a Cecília de nove anos se enquadrava bem. Mesmo com essa gratificação, ela permaneceu sob a infinita pressão da avó durante sua adolescência.

Ela seguiu para a Escola Normal do Rio de Janeiro, onde estudou até 1917 para exercer o trabalho de professora de português e literatura. Cecília também frequentava simultaneamente o Conservatório Nacional de Música, mas logo desistiu dessa arte por achar que não conseguiria ser boa o suficiente em duas áreas, priorizando a literatura, o que foi uma decisão certa de imediato, já que em 1919 o primeiro livro dela foi lançado. A obra se chamava "Espectros" e continha sonetos neo-parnasianos feitos por Cecília em seus 16 anos. O poema titular é, na minha humilde opinião, apesar de muito ignorado, um dos melhores de toda a obra da poeta:

"Nas noites tempestuosas, sobretudo

Quando lá fora o vendaval estronda E do pélago iroso à voz hedionda Os céus respondem e estremece tudo,

Do alfarrábio, que esta alma ávida sonda.

Erguendo o olhar; exausto a tanto estudo, Vejo ante mim, pelo aposento mudo,

Passarem lentos, em morosa ronda,

Da lâmpada à inconstante claridade (Que ao vento ora esmorece ora se aviva,

Em largas sombras e esplendor de sóis),

Silenciosos fantasmas de outra idade, À sugestão da noite rediviva - Deuses, demônios, monstros, reis e heróis."

A forma como eu interpreto esse texto talvez não seja a correta, mas certamente expressa algo sentido por mim e Cecília. São incontáveis ( e um pouco borradas em minha mente ) as vezes em que eu não caí no sono, acordei em meio a um pesadelo ou tive que romper com tudo ao meu redor devido à poesia. Para alguns, a inspiração é como uma borboleta colorida entrando subitamente num cômodo, parada e querendo ser observada, graciosa e calma. Para mim, sempre é uma mosca, insuportável e incômoda, que sempre faz com que eu pause minha rotina completamente para espantá-la. No entanto, o lado bom da vinda do inseto é que, quando ele parte, eu tenho comigo a expressão exata de como me sinto, um retrato da vulnerabilidade que me faz sofrer e que me dá força: eu me reconheço.

Acho que Cecília também se sentia assim no começo da carreira: nas noites chuvosas, estrondosas externamente e quietas intimamente, ela via vultos silenciosos, que capturavam sua atenção imediatamente e a faziam tanto o mal quanto o bem através do autoconhecimento que é fazer poesia. Por meio desse soneto podemos observar de onde surgiu o intimismo e a presença de misticismos característicos da poesia de Cecília, que estava só nascendo.

Ao passo em que a carreira docente e literária de Cecília se desenvolvia, ela também se apaixonava cada vez mais pelo artista gráfico português Fernando Correia Dias, que sofria de uma depressão muito grave, mas que apoiava Cecília em todas suas ambições. Em 1922, eles se casaram e formaram uma parceria por meio da junção dos poemas dela e das ilustrações dele em várias coletâneas poéticas até 1935 (e você vai entender porque isso acabou daqui a pouco). No mesmo ano, ela se aproximou de um grupo literário conservador da Revista Festa, que defendia a não-abolição dos preceitos parnasianos e simbolistas da poesia brasileira. Tal fato pode vir como uma surpresa, entretanto ao analisarmos a obra de Cecília, fica claro que ela não se sentia confortável sendo radicalmente tradicional ou modernista. Ela gostava do meio termo, da beleza de sonetos parnasianos, do intimismo simbolista e do universalismo modernista, e é justamente isso que faz de sua obra tão única e transcendental.

Nos três anos após o casamento, foram publicadas as coleções "Nunca mais...", "Poema dos poemas", "Criança, meu amor..." e "Baladas para El-Rei", todas com desenhos de Fernando. Os poemas nelas incluídos tinham caráter simbolista e se dirigiam, principalmente, ao público infantil, por quem Cecília tinha muito apreço por ser professora primária e ter três crianças, frutos dela e de Fernando, em casa: Maria Elvira, Maria Matilde e Maria Fernanda. Todo esse carinho e atenção resultou na fundação, pelas mãos somente de Cecília, da primeira biblioteca infantil do Brasil, localizada em Botafogo, no ano de 1934. No mesmo ano acontece um (des)encontro icônico que incentivaria Cecília a continuar publicando seus poemas. Segundo a Revista Galileu, em uma viagem para congressos literários em Portugal, nossa querida poeta aproveitou para marcar um encontro com o grande Fernando Pessoa. Ela passou horas esperando por ele num café em Lisboa, e então retornou ao hotel, onde encontrou um recado com uma cópia autografada de "Mensagem". O bilhete explicava que Pessoa não pôde encontrá-la devido a um conselho do horóscopo matinal. Esse evento pode parecer rude e um tanto engraçado, mas a lembrança de Pessoa e o livro autografado fizeram Cecília voltar a acreditar em seus dons poéticos.

Infelizmente, em 1935, Fernando Correia se suicida, deixando Cecília sozinha com as meninas, o que faz com que elas logo passem por crises financeiras. A partir daí, Meireles continua a escrever e a contribuir, junto com entidades e organizações nacionais, para a difusão do hábito de leitura infantil, fundando novas bibliotecas e centros culturais. Grande parte desse esforço vai por água abaixo quando o presidente Getúlio Vargas fecha vários desses centros, alegando que muitos livros conteriam conteúdo duvidoso para crianças.

Em 1938, é publicado "Viagem", obra ganhadora de um concurso da Academia Brasileira de Letras. Alguns dos melhores textos de Cecília estão presentes nesse livrinho, como o famoso "Motivo":

"Eu canto porque o instante existe

e a minha vida está completa.

Não sou alegre nem sou triste:

sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,

não sinto gozo nem tormento.

Atravesso noites e dias

no vento.


Se desmorono ou se edifico,

se permaneço ou me desfaço,

– não sei, não sei. Não sei se fico

ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.

Tem sangue eterno a asa rimada.

E um dia sei que estarei mudo:

– mais nada."

Cecília se entrega completamente à poesia. A vida é totalmente incerta no momento, mas ela finalmente compreende que sorrindo ou chorando, ser poeta é o seu refúgio em qualquer situação. O poema também tem uma não tão sutil referência a não definição da escola literária da escritora: ela não sabe se se desmorona, em rendimento ao modernismo, ou se permanece, numa mistura de parnasianismo e simbolismo considerada antiquada. Não obstante, ela continua com o seu estilo próprio e reconhece que nada disso importa, só o fato de estar escrevendo conta.

Dois anos após isso, ela conheceu Heitor Grillo, um engenheiro agrônomo com quem se casou em 1940. Com isso, a felicidade de Cecília finalmente foi restaurada e ela começou a escrever os poemas que fariam parte de "Vaga Música". Um desses poemas é "Canção de Alta Noite":

"Alta noite, lua quieta,

muros frios, praia rasa.

Andar, andar, que um poeta

Não necessita de casa.

Acaba-se a última porta.

O resto é chão do abandono.

Um poeta, na noite morta,

não necessita de sono.


Andar... Perder o seu passo

na noite, também perdida.


Um poeta, à mercê do espaço,

nem necessita de vida. Andar... – enquanto consente

Deus que seja a noite andada.

Porque o poeta, indiferente,

Anda por andar – somente.

Não necessita de nada."

Nesse texto, Cecília mostra os traços solitários de sua personalidade. Ao mesmo tempo em que é demonstrado o lado bom da solidão e da independência emocional ("Porque o poeta (...) não necessita de nada"), também percebemos que a estabilidade mental não depende de boas companhias ou de uma agenda cheia de compromissos, e sim de algo muito mais profundo e incontrolável. Cecília tinha um bom marido e amava suas filhas. Era escritora, tradutora, professora e jornalista, mas mesmo assim se sentia triste e solitária, o que servia de inspiração para seus poemas simbolistas. Na minha opinião, esse fato é a melhor prova de que o argumento "cabeça vazia é a oficina do diabo" é inválido quando usado pelo público conservador para se falar sobre a saúde mental. É por essa e outras razões que o legado de Cecília me fascina: ela mostrou todo o poder da mulher na poesia não tratando de assuntos românticos ou irônicos, porém sim sendo sincera e vulnerável quanto aos seus sentimentos.

Uma década depois, Juscelino Kubitschek deu a ela a ideia de escrever sobre a Inconfidência Mineira, provocando o surgimento do livro mais famoso de toda a obra dela: "Romanceiro da Inconfidência".

Não sei se é por trauma de questões ENEM/Fuvest ou pelo meu próprio gosto pessoal, mas hei de confessar que os poemas históricos de Cecília não são meus favoritos. Como o leitor de artigos já está cansado de saber, eu gosto de sinceridade emocional, e não de rimas perfeitas ou que ilustram um cenário importante historicamente. Os poemas de Romanceiro são sim muito bons, mas em uma sociedade contemporânea na qual a falta de empatia é mais que comum, os outros poemas de Cecília se tornam mais importantes. Termino esse artigo com um dos últimos poemas escritos por ela, um que sintetiza toda a dor que ela já sentiu:

"Por mim, e por vós, e por mais aquilo que está onde as outras coisas nunca estão,

deixo o mar bravo e o céu tranquilo: quero solidão.

Meu caminho é sem marcos nem paisagens.

E como o conheces? - me perguntarão. - Por não ter palavras, por não ter imagens.

Nenhum inimigo e nenhum irmão.

Que procuras? - Tudo. Que desejas? - Nada.

Viajo sozinha com o meu coração. Não ando perdida, mas desencontrada. Levo o meu rumo na minha mão.

A memória voou da minha fronte. Voou meu amor, minha imaginação...

Talvez eu morra antes do horizonte.

Memória, amor e o resto onde estarão? Deixo aqui meu corpo, entre o sol e a terra.

(Beijo-te, corpo meu, todo desilusão! Estandarte triste de uma estranha guerra...)

Quero solidão."

-Por Ana Ferreira da Motta Costa

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