“Complexo de vira-lata” x Valorização da Cultura Local
- Pugna!
- 15 de jul. de 2020
- 6 min de leitura

Eu gostaria de começar esse artigo expondo a letra de uma música cantada pelo Rei do Baião para, a partir dela, refletirmos sobre o tema principal da nossa discussão:
“Unite States of...
Unite States of...
Unite States of...
... of Piauí
A minha prima lá do Piauí
Deixou de fazer renda só pra ver novela
A minha prima lá do Piauí
Não bebe mais garapa: vai de Coca-Cola
Luz de Candeeiro não se usa mais
Luz artificial substitui o gás
Calça de couro, alvorada e brim
Deram o seu lugar pra uma tal calça lee
A minha prima escreveu pra mim
E não fala "venha cá", só fala "come here"
Vou mandar minha resposta breve
Para United States of Piauí”
From United States of Piauí, Luiz Gonzaga
Existe um termo usado na sociologia quando a temática sobre cultura é abordada, o xenocentrismo. Provavelmente você já tenha escutado o termo etnocentrismo, mas xenocentrismo pode causar uma pouco de estranheza. No entanto, é um conceito bem simples para ser entendido e servirá como uma boa base para a nossa discussão. O xenocentrismo é uma tendência de base cultural a valorizar outras culturas mais do que a sua própria, que pode se materializar em uma variedade de maneiras diferentes, como preferência por produtos, estilos ou ideias. Ou seja, pode ser visto como o contrário de etnocentrismo. É exatamente sobre essa questão que Luiz Gonzaga abordou em sua canção “From United States of Piauí” e, com isso, eu quero levantar um questionamento para vocês: até onde vai a nossa supervalorização da cultura externa?
Para encaminhar a abordagem, existe outro conceito muito importante para servir como parâmetro para esse questionamento, o famoso “complexo de vira-lata” definido por Nelson Rodrigues. Essa expressão tem por intuito definir o sentimento dos brasileiros em relação a outros países; relação essa que teria o Brasil em uma posição de inferioridade. Analisando a sociedade brasileira e o posicionamento dos brasileiros sobre a nação, fica nítida a descrença desses para com o governo, a educação do país, a economia, entre outros fatores. De fato, nós vivemos situações conturbadas em vários âmbitos sociais, mas, qual o impacto negativo dessa situação na nossa identidade cultural?

Primeiramente, é importante frisar que as raízes dessa situação são antigas e nem todo esse deslumbramento com tudo que vem “de fora” é causado pela situação política e socioeconômica do país. Voltando no tempo até a nossa colonização, não é novidade para nós que os europeus chegaram em território brasileiro impondo seus costumes, suas vestes, sua religião e sua língua para os habitantes nativos do nosso território. Os indígenas, vistos pelos colonos como “seres primitivos” que deveriam ser “educados” sob os moldes eurocêntricos, foram vítimas de um processo intenso de aculturação. No entanto, felizmente, muito da cultura indígena resistiu e algumas tribos que enfrentaram todo esse processo na tentativa de preservar suas raízes conseguiram manter vivo seu legado. Mas, ao invés de valorizarmos essas tribos, essas histórias, esses legados, vemos brasileiros reivindicando as terras cedidas às tribos indígenas, temos o episódio de jovens brasileiros que atearam fogo em um indígena e, para completar, a única presença da cultura indígena -se é que eu posso me referir dessa forma, já que, na verdade, são formas de apropriação cultural- que vemos no nosso dia-a-dia são crianças nas escolas fantasiadas de índios no dia 19 de abril para celebrar o Dia do Índio e pessoas usando fantasias de índio no Carnaval. Isso é preocupante e vergonhoso. Enquanto deveríamos enaltecer e ajudar a preservar a cultura que faz parte do berço étnico do Brasil, nós desvalorizamos e perpetuamos práticas que remontam preconceitos e diminuem a vasta diversidade dos povos indígenas. Esse é um bom ponto a ser refletido. Para enriquecer a discussão e evidenciar aqueles que estão no local de fala da situação, não posso deixar de apresentar e citar uma figura muito importante na trajetória da luta pelos direitos indígenas, Daniel Munduruku, doutor em educação pela Universidade de São Paulo, pós-doutor em Linguística pela Universidade Federal de São Carlos e indígena. De tantos discursos muito interessantes feito pelo Daniel -e que valem a pena serem pesquisados para ampliarmos nosso modo de enxergar a situação dos indígenas-, eu resolvi trazer uma colocação dele em uma entrevista para a BBC quando ele foi questionado sobre o uso da palavra “índio”: “Do meu ponto de vista, a palavra índio perdeu o seu sentido. É uma palavra que só desqualifica, remonta a preconceitos. É uma palavra genérica. Esse generalismo esconde toda a diversidade, riqueza, humanidade dos povos indígenas. Quando a gente usa a palavra índio, estamos nos reportando a duas ideias. Uma é a ideia romântica, folclórica. É isso que se comemora no dia 19 de abril. Aquela figura do desenho animado, com duas pinturas no rosto e uma pena na cabeça, que mora em uma oca em forma de triângulo. Há a percepção de que essa é uma figura que precisamos preservar, um ser do passado. Mas os indígenas não são seres do passado, são do presente. A segunda ideia é ideologizada. A palavra índio está quase sempre ligada a preguiça, selvageria, atraso tecnológico, a uma visão de que o índio tem muita terra e não sabe o que fazer com ela. A ideia de que o índio acabou virando um empecilho para o desenvolvimento brasileiro.”.
Continuando o raciocínio sobre as raízes do nosso “complexo de vira-lata”, é impossível não citar a forte influência dos Estados Unidos com a Doutrina Monroe, a política do Big Stick, o “Sonho Americano” e o processo de globalização. Não é difícil enxergar a maneira como muitos brasileiros enaltecem a cultura americana, como se essa fosse o ideal a ser seguido e o exemplo máximo da perfeição; como se o “Sonho Americano” fosse real. Toda essa problemática já pode ser evidenciada pela expressão “cultura americana”, visto que a América é um continente enorme com 35 países e os Estados Unidos são apenas uma parte dessa grande extensão. No entanto, nos habituamos a associar “americanos” aos estadunidenses, por exemplo, e muito disso vem da difusão da ideia de Doutrina Monroe, “América para os americanos”. Essa ideologia, criada nos Estados Unidos pelo presidente James Monroe, tinha como base a recusa à interferência europeia no continente americano e a todo o processo de colonialismo. Aparentemente, essa é uma linda doutrina que visa à defesa dos países americanos que buscavam a independência das metrópoles europeias, porém, se observarmos com atenção, trata-se de uma estratégia dos norte-americanos para defender seus próprios interesses, ou seja, dominar o mercado da América e impor superioridade. Além disso, durante a presidência de Theodore Roosevelt foi adotada a política do “Big Stick” -uma tática de diplomacia que atuava mantendo um ar amistoso nas negociações ao mesmo passo que deixava claro que, se necessário, usaria a força para atender seus objetivos- que contribuiu ainda mais para estabelecer a influência norte-americana nas Américas. Como consequência, sentimos a influência americana por todos os lados: na música, na comida, na linguagem, nos filmes, nas séries, no estilo de vida… E, para completar e adicionar a cereja do bolo, não só consumimos fortemente tudo que vem dos Estados Unidos, como também alimentamos a ideia de “perfeição americana”. É como se os Estados Unidos não cometessem falhas e não tivessem problemas políticos e socioeconômicos. De fato, se compararmos alguns fatores com a situação brasileira, conseguimos notar uma posição mais favorável dos norte-americanos, mas não podemos esquecer que temos diferentes raízes, histórias e trajetórias. Tal diferença não deve ser esquecida e muito menos motivo para nós brasileiros sermos rebaixados. Ainda nessa questão de dominação por parte da cultura estadunidense, não podemos esquecer do famoso e polêmico fenômeno da globalização -que é um bom tema para um artigo futuro devido às diversas abordagens possíveis- que foi essencial para divulgar o “American Way of Life” para o mundo e transformar a cultura em um produto a ser comercializado e seguir os moldes ditados pelos Estados Unidos.

Com toda a conjuntura citada, criou-se o costume de renegar nossos costumes, nossa identidade, nossa música, nossas produções cinematográficas, nossas raízes. É por isso que quem tem cabelo cacheado “deve” alisar; é por isso que quem decide tocar mpb precisa se adequar a uma batida que fique mais “pop” para ser "comercial"; é por isso que diariamente escutamos frases como “esse país não tem jeito”; é por isso que o Nordeste “é tudo a mesma coisa -seca, sertão e forró”; é por isso que não conhecemos nossas essências culturais; é por isso que estamos perdendo nossa identidade.
Vamos valorizar mais os artistas nacionais e regionais. Valorizar a cultura local. Vamos abraçar nossas raízes. Já que eu comecei com uma música, terminarei com outra música para deixar mais um caminho para refletir sobre o assunto:
“Ei, povo brasileiro
Não ponha suas crianças nas ruas para mendigar
Pois a saída de nossos problemas é a educação
Se você não teve sua chance
Dê-a seus filhos então
Mesmo que não seja ainda
O momento de lutar pela revolução
Certamente se passou o tempo de buscarmos a nossa conscientização
As crianças são o futuro, mas o presente depende muito de você
Não venda sua identidade cultural
Esse é o maior tesouro que um país pode ter
Alimentar, educar, investir
Mais tarde os seus filhos vão lhe agradecer
Muita atenção no outro quinze de novembro
Quando os homens sorridentes surgem em sua TV
Pois o mensageiro arco-íris
Virá do infinito pra nos presentear
Com o livro de nossa cultura
E a música dos povos para representear
O ressurgimento de nossas raízes
Olhe, sorria, goste da sua cor
Procure sempre sua consciência
E jamais tenha vergonha de falar de amor
Ei, vamos cantar
Tudo pode estar
Em seu coração”
Povo Brasileiro, Natiruts
-Por Giulia Santana
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