Memento (ou conto da memória)
- Pugna!
- 6 de jun. de 2020
- 8 min de leitura

Serviam um ótimo chocolate quente no Scott Café. Os acompanhamentos eram muito bons. O clima agradável era composto por aquela decoração que tentava imitar o clima de cultura parisiense, misturado com a sobriedade londrina, tudo isso ao alcance dos meus pés, na esquina aqui de casa. Era uma tarde de sexta, em pleno outono, nada mais urgente para fazer a não ser desfrutar de uma porção de sabores quentes enquanto lia meu Dublinenses, do James Joyce, e fugia dos disparates políticos do noticiário. Era como se, por um momento a cada semana, eu pudesse me transportar para um mundo ideal, dentro dos meus livros. Um lugar onde os conflitos fossem diversos da realidade entediante em que se vive neste país, às vezes. Não sou do tipo apolítico, longe de mim, muito menos o tipo que ignora e se omite diante dos muitos problemas que temos... Bom, pelo menos eu não era... mas ultimamente tenho me sentido profundamente avesso a aglomerações. Tenho medo de talvez ter perdido a fé nos homens do meu tempo, especificamente nos brasileiros do meu tempo, uma geração diluída em refrigerante preto, ressecada sob o sol que parece ter consumido os seus juízos, ao som de músicas hipnóticas onde despejam seus arroubos libidinosos... E além do mais, nada vale a paz de uma sexta-feira. As tardes de sexta eram feitas para me desconectar, desligar o celular, ignorar as redes sociais, me manter somente com os meus pensamentos e os daqueles autores que me são caros. Nenhuma outra voz era bem-vinda, nenhuma opinião enlatada, nenhum discurso repetido de terceiros, nenhuma pasmaceira adolescente que se enganasse com o mundo. Eu saía do trabalho, passava em casa para me despir da poeira do funcionalismo público, pendurar minha máscara de antipatia num canto e vestir a cara de felicidade por não trabalhar todo o expediente.
Era assim que eu me preparava para o esquecimento do mundo. Quando eu já estava saboreando a primeira xícara e o terceiro conto de Joyce, uma mulher de cabelos ruivos e olhos amendoados veio em minha direção. Notei sua presença apenas quando uma voz suave interrompeu minha leitura repetindo meu nome entre sorrisos próximos. Com a mão repousando em meu ombro e o perfume oriental invadindo-me o nariz, disse-me ela: “Wagner!”. Aturdido pela familiaridade do meu próprio nome, ofertei um sorriso amarelado, tentando reconhecê-la desesperadamente. Longos cabelos esvoaçantes me encaravam esperando resposta, por essa ínfima fração de segundo em que permaneci hesitante. Quem se esquece de alguém por completo? Aparentemente, eu. Não consegui estabelecer a mínima relação de familiaridade, como se fosse um rosto completamente novo e sem qualquer sinal de referências. Não era conhecida, nem lembrava ninguém que eu conhecesse, todavia, pelo calor do cumprimento, pela liberdade com que tocou meu ombro, tendo o tronco levemente inclinado, como quando esperamos a reciprocidade do outro para procedermos o cumprimento íntimo completo, pude deduzir que ela esperava por um abraço. Era inegável a sensação de intimidade. Nesse centésimo de segundo em que me debati com o dilema de responder ou não a tamanha afetuosidade, resolvi erguer-me para ao menos dar os tradicionais dois beijinhos de quando nos apresentamos a um desconhecido em vias de deixar de ser. Pensei ainda em não tomar a iniciativa, pois era possível que ela estivesse me confundindo com alguém. Em pouco tempo poderia dar-se conta do engano e me deixar a ver navios entre beijinhos mal interpretados. Não, seria muita coincidência confundir um Wagner com outro... Levantei pronunciando um “olá”, tímido, meio desconfiado, tentando parecer espontâneo. Nem bem me firmei em pé e fui abraçado fortemente, do jeito que somente se manifesta quando abraçamos alguém muito próximo. Quem será essa minha esquecida melhor amiga? Enquanto correspondia a aproximação, comecei a duvidar que houvesse algum engano. Parecia se tratar realmente de uma amiga minha, o que me colocava nesse instante na posição do desnaturado que a esquecera por completo. Mas como é possivel esquecer uma amiga? Antes que eu denunciasse minha falta de memória em algum deslize, ela tomou as rédeas do assunto.
― Estava justamente pensando no que você me disse outro dia sobre os heterônimos do Pessoa. Veja, estou lendo o Livro do Desassossego, como você recomendou... Meu Deus! Estou apaixonada por esse homem. Por que você não me disse antes? Se não tivesse te encontrado aqui, iria na sua casa em seguida pra te contar... Ah e pra te devolver o Manual de Roteiro de Cinema que você me emprestou... E as bebidas desse lugar?! Fabulosas, como você me disse. Estou viciada, vindo aqui umas três vezes por semana...
Deu muito trabalho disfarçar meu espanto, creio que consegui... De fato, tinha notado a ausência do Manual na minha estante há mais de uma semana... Só não conseguia vislumbrar como ele teria ido parar nas mãos dela. Num movimento rápido, tirou o livro da bolsa e me entregou. Fiquei feliz por ter meu pequeno de volta e voltei a atenção para o elogio efusivo que ela tinha feito anteriormente ao livro do Pessoa, um dos meus favoritos. Bom, a partir desse momento, seja lá quem fosse essa mulher, teria conquistado o direito de me acompanhar nessa tarde. Com um gesto, a convidei para ficar à vontade e sentar-se comigo. Na verdade, tinha percebido que era essa a sua intenção, preferi me adiantar na gentileza. Enquanto ela puxava a cadeira pra perto de mim, naquela mesinha redonda, eu ia pensando em tudo... Não só ela estava de posse do meu livro, como parecia conhecer minha casa e já ter ouvido comentários meus sobre o excelente cardápio que é servido no Scott. Agradeci, imediatamente partindo pra os comentários sobre a obra do Pessoa, empolgando-me quase tanto quanto minha nova velha amiga. Ela correspondia, chegava até a declamar trechos de poemas, fragmentos do Desassossego entre nossa conversa... Com doçura e perspicácia tecia seus comentários. Eu estava quase ignorando a natureza incomum daquele encontro, em virtude da inteligência demonstrada por ela, esta figura ainda sem nome, que ia ficando mais bonita a cada opinião que compartilhava. Perguntou como andavam meus escritos. Outra vez estive quase paralisado de susto. Como ela poderia saber de algo que não comento com ninguém? Nenhum dos meus amigos sabe que estou tentando me arriscar com a escrita de algumas palavras... Então, enquanto ela manuseava seu livro, pude ler seu nome escrito atrás da capa. Sophia. Nome bonito. Nessa altura, já começávamos a entrar na vereda da filosofia, após termos comparado heterônimos e sermos levados a refletir sobre as ideias do Caeiro. Li o seu nome quando já nos aventurávamos nos ideais Românticos, passando por Rousseau, Spinoza, Schiller, a natureza como o centro de todas as coisas, o desconforto de se sentir desconectado da origem, da essência e a beleza que existe em transmitir esse desconforto através das letras.
Ela me contou dos seus projetos novos, de como tinha acabado de decidir largar tudo pra cursar Cinema, de todos os seus sonhos ainda verdes e esperançosos... A cada vez que um comentário meu era acolhido, por iniciativa dela nossas mãos se tocavam em cima da mesa. Quando não era o bastante esse toque natural das mãos, apoiava-se no meu braço na ênfase empregada quando expressávamos a mesma sintonia. Findou que após minha demonstração de apreço pela filosofia de Rousseau, ela pôs seus dedos entre meus dedos e não se apartou mais. Riu de mim.
― Você é um Romântico, Wagner! E ainda se chama Wagner... Não tem jeito mesmo pra você.
Em retribuição, fiz uma piada simpática relacionando o seu nome à própria filosofia que debatíamos. Sophia! As horas foram passando, nossas mãos se exploravam cada vez mais. Na verdade as minhas mãos atônitas correspondiam o toque decidido das mãos dela. Quem nos visse ali naquele entrelaçar de carinho, não teria dúvidas de que éramos um jovem casal, talvez no início da conquista... Jamais imaginaria minha condição de profundo estranhamento misturado com atração e curiosidade. De repente, seu olhar teve uma mudança brusca. Saiu da frequência acelerada e eufórica da partilha de gostos em comum e abraçou aquela ternura de mulher quando quer demonstrar acolhimento ao homem vacilante. Esse era eu diante da minha apaixonante desconhecida. Como pude não lembrar dessa mulher? Ou um de nós é louco ou alguém me prega uma peça. Não, não é uma brincadeira, ela sabe bastante coisa sobre mim. Em alguma dimensão da existência, nós nos conhecemos. Definitivamente, ela não é louca. Eu? Quem sabe... Só mesmo louco pra esquecer uma mulher inteligente e de notável bom gosto literário. De algum modo ridículo, não faço ideia de como isso se deu, eu não sabia quem era essa pessoa que tão bem me conhecia. Ah! Que me importa se não lembro de nada antes desse encontro? Que me importa se as lembranças dela a meu respeito parecem apenas belas e estranhas ficções? Depois de tanta conversa, eu já me achava pleno conhecedor das suas inclinações filosóficas, dos livros lidos recentemente, dos seus gestos, dos olhos redondos e expressivos... Também já estava acostumado a ver as palavras brotando daqueles lábios coloridos de batom, sempre tão bem articulados a cada colocação de frase lúcida. Foi quando ela suspirou...
― Espero que você me perdoe pela indelicadeza do outro dia quando você me beijou... Você me pegou de surpresa e eu acabei falando besteira... Quero que você saiba que é recíproco... Tenho me sentido bastante atraída por você.
Meu coração acelerou e foi embora, deixando ali sem palavras o meu corpo paralisado pela mente esquecida. Minha mente naquela hora parecia exigir de mim as lembranças que eu não tinha. Ela foi se aproximando do meu rosto, como quem estava prestes a fazer algo digno de ser lembrado. Meu Deus, eu era uma alma rabugenta e idosa num corpo de 26 anos! Fiquei surpreso quando percebi que eu estava em vias de ceder a um desejo súbito de beijá-la. Logo eu deixando que outro ser humano adentrasse meu espaço assim tão rapidamente? Bem, rápido pra mim que não me lembro, pois ela demonstrou me conhecer melhor do que o meu cachorro. Toquei seu rosto, sem pressa, sem saber o que fazer, afastei uma mecha de cabelo que se atirava em meu caminho e enquanto mergulhado naquele olhar amendoado, ela veio até minha boca. Havia o aroma do chocolate no beijo, agora aquecido não pela maravilha do fogo, mas pelo calor produzido pela vida humana que pulsa em nós. Para ela, a julgar pelo que me disse, era um segundo beijo. Para mim, o primeiro e mais inesperado beijo numa desconhecida amiga recém encontrada. Como pude ter a ousadia de esquecer? Minutos, não pude contá-los, passaram-se infinitos ou uns poucos, quem pode contar a eternidade dos instantes? Estive confortável naquela boca quente e achocolatada até que ela precisou ir embora. A nossa despedida se deu de modo tão singelo, como nunca me despedi de ninguém. Eram quase 20h. Ela precisava ir, explicou-me o porquê, mas ignorei enquanto tentava memorizá-la por completo. Foi embora aquele vulto de mulher inesquecível. Fiquei a admirar de longe seu corpo em movimento, seu último olhar pra trás, sumindo na memória. Nunca mais a vi. Ainda me culpo por tê-la esquecido. Se eu lembrasse de anotar ao menos o número do seu celular, poderia telefonar e... Que estúpido numa situação dessas esquece de pensar em algo tão essencial? Aparentemente, eu. Permaneci por várias semanas indo ao Scott Café todos os dias. Nenhum sinal da minha Sophia. Ninguém mais a viu. Comecei a duvidar da minha própria lembrança, em alguns momentos, da minha própria sanidade... Assim nos perdemos pelo caminho. Ainda me pego esperando uma visita dela, acreditando na surpresa boa que seria abrir-lhe a porta numa manhã de qualquer dia. Aos poucos, retomei minha rabugice e a pouca vontade de interagir com seres humanos entediantes. Voltei para a minha rotina de sextas repetidas, com longas tardes regadas pelo chocolate quente que me faz lembrar daquela mulher desconhecida, que jamais esquecerei.
- Por Ivan de Aragão
*Conto escrito em 2016, como atividade obrigatória de uma disciplina de criação literária na universidade.
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