Do “não existe racismo no Brasil” até a democracia racial, duas ideias erradas!
- Pugna!
- 3 de dez. de 2020
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Muitos já debateram sobre o racismo no país, destes, grande parte “bate o pé” em dizer que não existe racismo aqui. Contudo, a afirmação de que não há racismo no Brasil deriva do fato de nossa lógica de segregação racial não ser tão explícita quanto foi em países como a África do Sul, com o regime do apartheid, ou nos EUA, que por muito tempo viveu um período de segregação racial explícita, cujas consequências geraram o racismo explícito que há hoje, disfarçado de liberdade de expressão. O Brasil seria um país miscigenado, que desde Gilberto Freyre é definido como uma ideia de convivência harmoniosa entre as etnias, o que claramente não é verdade, devido ao que será exposto no presente artigo e a outros fatos.
As leis brasileiras não apresentavam nenhum princípio abertamente racista, o que não as tornavam menos capazes de segregação. Em 1850, mais especificamente, duas semanas após a promulgação da lei Eusébio de Queirós foi promulgada a lei de terras, que estabelecia o fim da apropriação de terras: nenhuma terra poderia mais ser apropriada através do trabalho, mas apenas por compra do estado. Além de impedir que os escravos obtivessem posse de terras através do trabalho, essa lei previa subsídios do governo à vinda de colonos do exterior para serem contratados no país, desvalorizando ainda mais o trabalho dos negros e negras. Após o fim da escravidão legal, a população negra encontrava-se a própria sorte, marginalizada, em uma sociedade até há pouco escravista, não podiam cultivar a terra e não tinham dinheiro para comprá-la diretamente do estado.
Outro exemplo decorrente da problemática supracitada é o voto censitário, que por muito tempo imperou no país, uma forma velada de exclusão de uma população sem condições de obter uma renda suficiente para o exercício da cidadania, se é que podemos chama-la assim. Esse é um processo que se repete com o avançar da sociedade, em 1888 a escravização legal não é mais possível, os escravos agora estão libertos, mas pouco depois, em 1889, com a república, os analfabetos estão excluídos do processo eleitoral.
Eu pergunto ao leitor, em especial ao que se alinha ao posicionamento de que convivemos pacificamente entre etnias. Apesar de termos, na década de 50, a lei Afonso Arinos, a primeira legislação a incluir entre as contravenções penais a prática de atos resultantes de preconceito de cor da pele, o que de fato é um avanço pois é o reconhecer estatal de que racismo existe. Isso justifica ou corrige a herança da escravidão que excluía socialmente a população negra? Eliminar o estatuto da escravidão garante a essa população, privada da cidadania, humilhada, violentada, transformada em objeto de compra e venda os seus direitos efetivos?

São cidadãos de papel, igualdade é um sonho distante e a lei Afonso Arinos uma bela estória de ninar.
Nessa nossa realidade a lei não precisa dizer que negros estão impedidos de serem presidentes, médicos, juízes do supremo, não o são simplesmente pela falsa meritocracia em que se você é negro, lamento, mas terá de correr, na pista para o sucesso, um quilômetro atrás, com obstáculos. A representação é necessária para estimular, mas que figura, em meio a tanto desastre, é capaz de prosperar.
O racismo no Brasil, e é importante esclarecer isso, não pode ser disfarçado de liberdade de expressão, como o é nos EUA, mas não pode simplesmente por que não é fruto de uma pessoa (seja lá qual o arquétipo que queira imaginar para esta), mas um sistema já completamente organizado, o racismo no país é estrutural. Ele está tão internalizado nas instituições sociais que não estranhamos, enquanto na condição de país que se declara como tendo maioria negra, não termos nenhum ministro do Supremo Tribunal Federal autodeclarado negro, uma maioria branca no congresso, nenhum presidente, no pós redemocratização, negro. O que temos é uma sociedade que castra os sonhos da população de cor.
O racismo sutil do Brasil tem tantas nuances que o fato de ter amigos negros não abona ninguém do preconceito. A pessoa pode andar com negros e mesmo assim apresentar comportamentos racista, como a mulher que, apresentando um comportamento machista, diz: “é necessário ter culhões para enfrentar alguma coisa”. O mito da democracia racial criou formas de discriminação tão sofisticadas que até mesmo negros cometem atos racistas, numa demonstração cabal da veracidade da teoria de Pierre Bourdieu sobre violência simbólica, que é reproduzida inconscientemente.
A carnalidade nas relações entre pessoas de diferentes etnias não comprova igualdade racial, os estereótipos sobre corpos de negros, como os que cita a música “Caravanas”, do Chico Buarque, “diz que eles têm picas enormes e seus sacos são granadas” apenas são reproduções de um discurso animalizante, que serve para reduzir a população já oprimida a uma posição de inferioridade. Não há igualdade nesse tipo de relação. Portanto, essa justificativa é incoerente, e, talvez até mais sem sentido que a próxima e mais famosa, “tenho até um amigo negro”.
Esse famoso argumento não tem uma lógica clara, visto que o racismo no Brasil se estruturou de uma forma sistêmica e desde o período da escravidão legalizada já havia relações afetivas entre negros e brancos. As amas de leite eram escravas domésticas que cuidavam dos filhos dos senhores de engenho, amamentando-os, conviviam com os donos da casa, mas nem isso as salvava das chibatadas e outras formas de punição.
Desde o período escravista, os brancos eram capazes de se relacionarem de maneira afetiva com negros, mas isso não os impedia de serem racistas e de se acharem superiores às pessoas negras. E, para reforçar a primeira argumentação sobre a carnalidade, há de se somar a comum ocorrência de estupros das mulheres negras pelos senhores de engenho, que as culpavam por serem “sedutoras e irresistíveis”. Desses estupros deve-se nossa miscigenação, a tão falada e tão falsa democracia racial é isso, uma mistura forçada de gametas, uma teoria forçada, de um sociólogo filho do engenho e iludido pela romantização da escravidão que ele mesmo faz.
Por: Gabriel Tôrres
Referências Bibliográficas
• Charge de Bira
• Tirinha do Armandinho
• http://www.palmares.gov.br/?p=52750
• mercadopopular.org/politica/como-lei-de-terras-perpetuou-opressao-dos-negros
• https://www.buzzfeed.com/br/ramosaline/por-que-ter-um-amigo-negro-nao-te-faz-menos-racista
• https://www.geledes.org.br/ja-fiquei-com-um-negro-e-o-argumento-mais-furado-para-se-defender-de-acusacoes-de-racismo/
• Existe racismo no Brasil? – Leandro Karnal
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