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Estou Me Preparando Para Quando o Carnaval Chegar: o mundo do campo engolido pelo mundo urbano

Estamos familiarizados com o conceito de êxodo rural. Antigos agricultores, pequenos comerciantes do campo, agora correm às cidades em busca de empregos e melhores condições de vida. Porém, vemos uma nova realidade emergindo. Nela, o mundo rural é engolido pelo mundo urbano como consequência de um capitalismo desenfreado que não conhece limite algum. É nesse contexto que temos contato com Toritama, cidade de 40 mil habitantes no agreste pernambucano. Como registro desse capítulo de sua história, foi filmado o documentário Estou Me Preparando Para Quando O Carnaval Chegar. Em menos de uma hora e meia, somos cativados por um documentário que dá gosto de assistir, repleto de leveza e com personagens que representam o melhor do brasileiro. Ao mesmo tempo, aquele que assiste atentamente não deixa de notar a discreta, mas forte, crítica ao estado em que aqueles trabalhadores se encontram.


Em Toritama, sucesso é ter sua própria “facção”, uma pequena fábrica de jeans que é geralmente presente em garagens. Porém, trabalhar em uma também é motivo de orgulho aos cidadãos, que se sentem donos de seus próprios umbigos. Lá, você entra a hora que quer e sai a hora que quer, pois a carteira assinada é raridade. Mas lembrando, quanto mais você faz, mais você ganha. A cidade é conhecida por ser a capital do produto, pois é sozinha responsável por 20% de toda a produção nacional. Isso equivale a 20 milhões de jeans ao ano, o que significa que em média cada morador de Toritama produziu 500 peças. Toda a economia do lugar gira em torno disso, e lá só não trabalha quem não quer, pois há sempre mais a ser produzido. Mas em que condições esse trabalho está sendo feito?


Entrevistada no documentário, uma senhora conta que chega às 7:30, fica até as 8:30, vai para casa tomar café e volta para ficar até 11:30. Nesse horário, vai almoçar e volta à facção 13:30. Às 18:30, vai preparar a janta e comer, mas logo volta às 19:30 para terminar sua jornada de trabalho às 22h. Em Toritama, essa é a rotina da maioria dos moradores de domingo a domingo. “Cansa, né? Mas a gente ganha mais”, é o que diz uma das funcionárias. Mesmo nessas condições e com um total de zero direitos trabalhistas como décimo terceiro, aposentadoria, férias remuneradas e jornada de trabalho de 8 horas, ainda assim os moradores expressam muita gratidão ao longo de todo o filme. Para eles, o jeans é tudo. Sem ele, a cidade não gira. E isso, como telespectadores, é o que a gente bem sabe.


Toritama vive num ciclo eterno de trabalho e pobreza. Por mais que o documentário nos apresente personagens felizes e acomodados com sua realidade, é possível enxergar o cansaço por trás do sorriso. E não há símbolo melhor disso que o carnaval, juntamente com o ano novo, a única época de descanso dos trabalhadores. Nos cinco dias que duram o evento, a cidade é um vazio sem fim. Quem fica em Toritama compartilha que seus sentimentos são de solidão. A tristeza de quem, mesmo trabalhando dez horas por dia todos os dias, não conseguiu juntar o suficiente para aproveitar o carnaval na praia. Quando chega essa temporada, os moradores “vendem o que têm e o que não têm” para conseguir sair da cidade. Uma mulher, tentando vender sua geladeira por 150 reais para conseguir arcar com os custos, afirma que irá para o carnaval nem que pegue um empréstimo com juros. E que após o grande evento, volta à Toritama para trabalhar ainda mais e comprar a geladeira novamente. Quando ignoramos o impacto do capitalismo sanguessuga que está presente nessas palavras, até podemos admirar o desapego com os bens materiais que os moradores nos mostram. Eles vivem o momento, e para viver o carnaval eles ousam vender geladeiras, televisões, celulares ou o que for necessário para chegar ao mar. E quando chegam, aproveitam cada segundo como se as férias não tivessem fim. Mas elas têm. Após uma semana de lazer, voltam os moradores às facções, trabalhando apressados, ansiosos para a chegada do próximo carnaval.


Muitas vezes me perguntei como um documentário que trata de um tema tão triste e complexo como a chegada das fábricas ao mundo rural, e consequentemente a completa transformação dele, pode trazer uma leveza tão grande. Cheguei à conclusão de que são duas as razões para essa característica. Primeiro, os personagens. O charme à brasileira, a beleza e humildade no olhar para a vida como ela é e não como poderia ser, a criatividade na hora de criar peças únicas, a determinação em focar sempre no lado positivo das coisas, a força de vontade em seguir sempre firme na espera do carnaval. Com certeza, o documentário expressa o melhor do nosso povo. E apesar de todos os personagens serem cativantes, temos dois que se sobressaem e são inesquecíveis. O narrador da história e Léo.


O narrador é um homem de certa idade, o qual nunca conhecemos se não pela sua voz melodiosa que nos guia como nenhuma outra. Ele é um elo entre a Toritama do passado, cidade baseada na agricultura, e a do presente, em que o mais importante é a produção do jeans. Costumava viajar com seu pai à cidade, e, por estar conhecendo junto a nós essa nova Toritama, constrói uma relação entre o povo, que vê suas ações com total normalidade, e nós telespectadores que ficamos chocados com a condição em que vivem os cidadãos da pequena Toritama. Ele é peça-chave na crítica discreta comentada anteriormente, e a maior representação disso é uma das mais bem feitas cenas do documentário. Brincando com o som produzido pelas máquinas e a belíssima trilha sonora, expressa a ansiedade e angústia. Nas suas próprias palavras após escutarmos repetidas vezes o zumbido produzido pelas máquinas de costura e assistirmos um movimento contínuo que parece eterno e cíclico, “Decido cortar o som. O barulho ensurdecedor das máquinas me causa ansiedade. Agora, essa repetição desse movimento que me causa angústia. Coloco uma trilha sonora. O balé das mãos se move no compasso da música. Filmo de outro ângulo. A angústia da repetição permanece”. A poesia dessas palavras, que brinca com música e fotografia de forma exemplar, torna esse documentário uma experiência especial e impagável. O narrador tocou meu coração, a obra tocou minha alma.


E agora chegamos ao carismático Léo. O Léo faz de tudo! Trabalha desde os treze anos de idade com tudo que pudermos imaginar e mais um pouco. Com um currículo vasto, orgulha-se de dizer que é dono de si. Ninguém manda nele. Com exceção do carnaval, do ano novo, e de alguns cochilinhos da tarde, sua vida é trabalho. Apesar de não ter recebido uma educação de alto nível, é um homem consciente e inteligentíssimo. Ao mesmo tempo, produto capitalista quando vê no trabalho o sentido de sua existência. Seu português pode não ser o culto, mas ele sabe o que diz e o porquê de dizê-lo. A forma como esse homem humilde leva sua vida é uma das grandes razões pela qual esse documentário tem um lugar único no meu coração. Só de conhecê-lo, a uma hora e meia de filme já vale. Mas como foi mencionado, existem inúmeras razões para nunca se esquecer desse trabalho. Uma das coisas que mais chamou atenção, e contribui para a sutil e constante crítica, foi como nos é mostrado o quanto Léo é esforçado e trabalhador. Porém, ainda assim, não conseguiu juntar dinheiro o suficiente para o tão esperado momento carnavalesco. Se não fosse pela ajuda da produção, que arcou com os custos de toda a sua família em troca de vídeos feitos por eles mesmos dos momentos vividos na praia, ele teria de se contentar com a Toritama de todos os dias. E assim, lá se iria a sua única semana de lazer em todo o ano.


O segundo motivo que nos passa a sensação de leveza é o respeito da equipe pelos moradores e suas perspectivas. O documentário é humano e nada é imposto. Os cidadãos de Toritama afirmam que são felizes nessa situação, que se engana quem pensa que a vida deles é ruim. Quem somos nós para dizermos que eles não são? Quem somos nós para afirmarmos que eles lutem por direitos trabalhistas e reneguem essa vida? Nós queremos mais para eles, mas quando um olhar de compreensão é explorado ao respeitar a história daquelas pessoas, o documentário ganha muito mais poder. A escolha de trazer a opinião de forma poética e nunca imposta é feita, trazendo a nós um conteúdo inteligente e profundo que não pode ser analisado superficialmente. No meu ver, a maior demonstração de respeito e empatia às perspectivas dos cidadãos de Toritama é a fala final do narrador. Enquanto a câmera lentamente se aproxima de uma facção, ele diz “Toritama muda a cada dia. Somente a chuva que cai depois do carnaval permanece a mesma. Ela anunciava o início do plantio para os agricultores. Agora, anuncia o fim das férias para os trabalhadores autônomos, que retomam a produção de jeans, orgulhosos de serem donos de seu próprio tempo”.


Para finalizar minha análise, compartilho minha cena favorita. Do meio para o final do documentário, quando já nos foi mostrada a dura realidade de Toritama, somos apresentados à cena mais poética da obra. Em meio a filmagens de manequins, ouvimos moradores compartilharem conosco a intimidade que são seus sonhos. Diz muito sobre quem são aquelas pessoas quando alguns sonhos ecoam em nossa mente: trabalhar, uma casa confortável, ser dono de sua própria facção, uma vida fora de Toritama. Uma voz feminina comenta “o pior que eu não me lembro, mas eu sei que eu sonho, mas eu não me lembro de nenhum sonho agora”. O sistema de produção de jeans tirou muito dos moradores, e para alguns tirou até o sonhar. Em troca, deu aos cidadãos uma vida de trabalho árduo e o carnaval. O que é mais representativo para mim nessa cena são as imagens. Sonhos proferidos enquanto assistimos manequins. Imóveis. A grande maioria das pessoas nunca sairá de Toritama, mantendo-se num ciclo infinito de trabalhar como um condenado por 360 dias no ano e festejar gratos por 5 dias de carnaval. Em outra cena, uma agricultora comenta que conhecia uma mulher que sempre desprezou a ideia de morrer em Toritama, mas mesmo quando ela finalmente conseguiu sair da cidade, a vida não lhe deu sossego. Ela volta e morre em Toritama. Essas cenas se conectam tão bem. Há representação maior da imobilidade social desses moradores? Eles nascem naquela condição e morrerão naquela condição. E, apegando-se a tudo que lhes resta, ainda seguem com um espírito otimista se preparando para a chegada do próximo carnaval.

- Por Celi Mitidieri

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