Hipátia, mulher e filósofa
- Pugna!
- 18 de mar. de 2020
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Hoje eu quero falar um pouco sobre uma mulher que foi brutalmente assassinada pela ignorância humana. Apesar dessa frase soar extremamente comum diante da enorme quantidade de mulheres que poderiam ser listadas numa situação semelhante, eu resolvi escrever sobre Hipátia, uma filósofa do século V, cuja história me comove há anos e que, provavelmente, muitos de vocês não conhecem.
Hipátia nasceu em Alexandria, no Egito, cidade fundada séculos antes por Alexandre, o Grande, o conquistador grego (na verdade, macedônio) que esparramou a cultura helenística por todo o mundo antigo, desde o Egito, passando pela Babilônia e até mesmo alcançando as terras indianas. Alexandre deixou no mundo a sementinha que iria florescer em Roma séculos depois, a semente que resultou no imperialismo romano, mas que no coração do jovem da Macedônia, educado por Aristóteles, tinha as cores de um sonho inocente de unidade entre os povos, de convivência pacífica e aprendizado entre culturas diferentes, submissas a um mesmo governo centralizado e grego, é claro. Todo sonhador acredita na superioridade do seu próprio sonho. Fato é que, mesmo com um império de curta duração, o feito mais duradouro de Alexandre foi diminuir as fronteiras culturais do mundo antigo. Depois da sua morte, o Egito passaria a ser governado por uma dinastia grega, que teve origem com um dos generais do séquito alexandrino, Ptolomeu (mesma dinastia da famosa Cleópatra, última rainha do Egito antes da conquista romana).
Toda essa retrospectiva histórica é importante para entendermos o contexto em que Hipátia vivia e os desdobramentos desse cenário na sua trajetória. Alexandria era uma cidade egípcia, um dos grandes centros urbanos do Império Romano, abrigava a maior e mais famosa biblioteca do mundo antigo, além de ser o ponto de encontro entre três grandes culturas, a cultura pagã helenística, a cultura judaica, por conta do grande número de judeus ali residentes e a cultura cristã, que encabeçava uma reviravolta política, com as inúmeras conversões entre as camadas sociais mais elevadas, fazendo com que a nova religião abandonasse o status de uma minoria excluída, assumindo o status de uma maioria opressora. Esse intrincado cenário é muito bem retratado no filme espanhol Ágora (Alexandria, em português brasileiro), lançado em 2009, pelo diretor Alejandro Amenábar, que não só retrata esse contexto plural da Alexandria do século V, como também narra os últimos dias de Hipátia. É o tipo de filme que nos dá um soco no estômago, que joga em nossa cara um momento sombrio da humanidade, deixando um misto de sensações amargas pelo que fizemos no decorrer da história, ao mesmo tempo em que se orienta na direção de uma crítica atualíssima acerca da ascensão do fundamentalismo religioso, responsável não só pela crescente onda de intolerância religiosa, mas também pela injustiça histórica para com as mulheres, injustiça pautada numa perspectiva ignorante, falocêntrica e ultrapassada no que diz respeito à mulher.
Uma mulher que não estava calada
Quem já teve a oportunidade de ler a Bíblia (livro sagrado para os cristãos) certamente já se deparou com o trecho em que o próprio apóstolo Paulo profere as seguintes palavras: “As vossas mulheres estejam caladas nas igrejas; porque não lhes é permitido falar (...)” (I Coríntios 14:34). Esse é certamente um dos textos que mais me impressionam desde os meus 12 anos de idade, quando descobri que o cristianismo não era uma religião para mulheres, pois o pré-requisito básico era o silêncio, a ausência de voz e a submissão à vontade dos homens. Essas eram as palavras de um apóstolo que realmente nunca conheceu pessoalmente o Jesus de que tratava. Era difícil para um cristão do século V, que ouvia da boca dos bispos frases como essa do apóstolo Paulo, encarar com naturalidade uma mulher que não apenas falava, mas ensinava os homens. Hipátia era uma figura proeminente na cidade, filha de um pai também filósofo e matemático, sábia de grande reputação, com profundo conhecimento de filosofia, matemática, astronomia, poesia, artes... Hipátia não era uma mulher que aceitava estar calada, pelo contrário, dava aulas para alguns dos jovens mais bem nascidos de Alexandria. Enquanto hoje alguns estão a duvidar da circunferência da Terra, ela se preocupava em entender a trajetória elíptica da Terra em torno do sol, debatendo e questionando os sistemas cosmológicos geocêntricos.
Infelizmente a sua história é sempre lembrada não pelos seus feitos científicos, pela sua sabedoria marcante para sua época, mas pela forma brutal como foi assassinada publicamente. O mesmo povo que tempos antes queimara a grande biblioteca de Alexandria, relegando ao esquecimento quase que todo o conhecimento científico da antiguidade, em nome do fanatismo religioso da massa ignorante, esse mesmo povo foi capaz de atacá-la na rua, sem qualquer chance de defesa. Relatos históricos chegam ao consenso de que ela foi esfolada viva por uma multidão de cristãos e seu corpo, mesmo depois de morto, foi queimado numa igreja. O filme de Amenábar nos dá um final menos indigesto do que a história, mas preserva-lhe a natureza grotesca. Para os iluministas, Hipátia se tornou um símbolo da luta contra as trevas da ignorância, feministas também relembram a sua trajetória. A sua memória continua nos inspirando e denunciando o poder destrutivo que tem a ignorância humana quando associada a um argumento de cunho religioso e a interesses políticos.
- Por Ivan de Aragão
Leitura recomendada de um artigo sobre o mesmo tema:
https://www.publico.pt/2009/12/30/culturaipsilon/noticia/o-espelho-de-hipatia-248062
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