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Mito e Interpretação Realidade

  • Foto do escritor: Pugna!
    Pugna!
  • 29 de mar. de 2020
  • 5 min de leitura

Esse foi o título de um pequeno ensaio que escrevi no ano passado, um texto que na época tinha os moldes científicos da academia, mas com uma certa liberdade temática para relacionar a bibliografia da disciplina e o meu interesse de pesquisa. Quando pensei no tema para o texto dessa semana na Pugna, me veio à mente a ideia de simplificar e resgatar alguns argumentos comentados naquela ocasião. Primeiramente, por que estudar os mitos? Algo que você pode estar se perguntando neste momento. É bom que se deixe claro desde já que o conceito acadêmico de mito vai numa direção completamente diferente da que o senso comum costuma trilhar.


É muito recorrente a associação equivocada entre mito e mentira, como se mito fosse simplesmente um relato fantástico qualquer sobre algo que não é verdade. Essa percepção tem algumas raízes e causas históricas que nos tomariam muito tempo para reconstituir aqui. Fato é que se examinarmos rapidamente as origens etimológicas da palavra mito, desde o indo-europeu até o grego, veremos que “mito” está profundamente ligado ao sentido de pensamento, comunicação, mensagem e história. Somente depois do iluminismo é que se firma essa oposição clássica no senso comum entre mito e verdade.


Diversos mitólogos costumam chegar a um consenso de que o mito é uma narrativa construída coletivamente, sem autoria definida, que visa fornecer sentidos de mundo capazes de orientar um determinado povo ou comunidade na elaboração de uma identidade coletiva. Para essa tarefa, o mito se preocupa com a noção de origem das coisas, origem do mundo e, consequentemente, com o estabelecimento de uma história que atribua sentido e origem para o surgimento da própria comunidade em questão. A narrativa mitológica se dispõe a organizar o mundo a partir das lacunas que as limitações humanas nos impõem, dando ao homem uma inspiração que muitas vezes se desdobra em manifestações religiosas, para que, através dessas tais inferências religiosas, o indivíduo possa ancorar as suas inquietações diante da vida e, numa atitude mais serena, possa se dedicar às questões práticas do seu cotidiano em sociedade.


Essa “realidade” do mito é uma realidade hermenêutica e não uma realidade factual e histórica, muito menos científica. Como você pode observar em toda narrativa mítica, as definições de tempo histórico são sempre vagas e imprecisas, é sempre uma menção ao “início dos tempos”, um princípio não datado, que nos lembra o tempo narrativo dos contos de fada e o seu “era uma vez”, ou ainda um tempo próprio repleto de referências nem sempre verificáveis. Alguns estudiosos acreditam que essa imprecisão serve justamente para demarcar o espaço do mito, não no registro histórico e científico, pois ele, originalmente, não tem necessidade nem interesse de adentrar nesse âmbito. Não se trata de uma narrativa fechada e objetiva, pelo contrário, o mito está entrelaçado com a arte, desde a sua constituição sempre recheada de elementos poéticos e literários. A matéria-prima de todo mito é o símbolo, e, por sua vez, o símbolo é parte fundamental da experiência religiosa. Desta forma, a leitura que se faz de um mito deve ser atenta para não incorrer no erro de interpretar literalmente um conteúdo que possui seus sentidos muito mais ligados à dimensão simbólica da linguagem. Interpretar um mito sem a sensibilidade de lhe reconhecer a sua dimensão particular é como ignorar aquilo que o torna especial.


O mito faz parte do nosso cotidiano. Quando você se dirige a uma igreja, por exemplo, e participa da celebração da eucaristia, caso você seja católico, ou da santa ceia, caso você seja protestante, você está presenciando um rito. Todo rito reproduz e encena em gestos, posturas, objetos e palavras a mensagem simbólica do mito a que se refere. Ou seja, ele resgata a mensagem simbólica de uma narrativa milenar que nos direciona para uma sugestão de comportamentos a serem adotados na nossa vida social, no ponto de vista da instituição religiosa que promove o rito. O mito nos convida à reflexão ao mesmo tempo em que ele incentiva determinados comportamentos, como o desenvolvimento de virtudes como a coragem, a honra, a empatia e o amor ao próximo. Todo relato mítico reflete aquilo que determinada sociedade tem como valores desejáveis. Enquanto o grego exaltava a coragem e a força em seus heróis, a nossa cultura ocidental, marcada pela tradição cristã, prega a caridade, o amor, a paciência, etc. (tendo em mente as devidas ressalvas a momentos históricos em que tais valores estiveram em baixa).


Como você deve ter percebido a essa altura, o mito está mais próximo da arte do que da ciência e isso não é nenhum demérito, isso não o torna menos relevante, visto que é através da devida compreensão das mitologias que nos afetam que conseguimos compreender melhor as nuances da sociedade em que vivemos. Quando nós nos deparamos com o fundamentalismo religioso, estamos nos deparando com uma interpretação equivocada de uma determinada narrativa mítica, uma interpretação que peca justamente na medida em que não consegue compreender a natureza do texto que lê e tenta lhe atribuir um caráter absoluto descabido, unicamente com a intenção ignorante de exercer determinados poderes sobre aqueles que não compartilham da mesma crença.


Todo fundamentalismo é, portanto, uma questão educacional, posto que é fruto de uma deficiência linguística, da inaptidão para interpretar um texto em seu contexto específico. Daí a importância que teve a proposta recente de ensino religioso em nosso país, apesar de todo nosso histórico de dificuldade no processo de letramento das massas. O ensino religioso não foi proposto para promover propaganda religiosa, a ideia do ensino religioso nas escolas era justamente contribuir na formação de cidadãos mais conscientes de que o fenômeno religioso tem suas particularidades e que independente da crença escolhida, ou da ausência dela, o indivíduo tem todo o direito de exercer a sua liberdade. Infelizmente, ainda temos dificuldade na realização dessa empreitada pois os agentes religiosos confundem as suas esferas de atuação e interferem num processo educacional que não lhes compete, pois para tal tarefa os estudos em Ciências da Religião tem se desenvolvido no país nas últimas décadas, firmando uma tradição acadêmica que já é bastante consolidada em países europeus desde o final do século XIX, por exemplo. Cremos que esse impasse deva ser superado naturalmente, assim que o devido conhecimento for alcançando as diversas categorias envolvidas com a questão.


Para finalizar a reflexão de hoje, eu gostaria de deixar alguns questionamentos para você que me lê: sob qual paradigma você edifica a sua percepção do mundo? A sua visão de mundo se ancora num paradigma sobrenatural? Você acredita na ação de agentes divinos na esfera humana? Ou você acredita num paradigma naturalista, cuja base se apoia na percepção da realidade unicamente regida por elementos palpáveis ou observáveis dentro de uma cadeia de causalidade definida? Se você tirar alguns minutos para ponderar sobre essas questões, você vai entender um pouco mais sobre o dilema filosófico que marcou a história da filosofia clássica, na transição entre o chamado “pensamento mítico” e o “pensamento filosófico/racional”. Quem sabe numa outra ocasião a gente possa falar um pouco mais sobre isso.


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Deixo logo abaixo algumas sugestões de livros interessantes, o primeiro é de um mitólogo bastante conhecido, Joseph Campbell, e o segundo trata em linguagem simples sobre a complexidade da experiência religiosa, sua relação com mitos e ritos.

CAMPBELL, Joseph. O heroi de mil faces. Trad. Adail Ubirajara Sobral. São Paulo: Pensamento, 2007.

CROATTO, José Severino. As Linguagens da Experiência Religiosa: Uma introdução à fenomenologia da Religião. Trad. De Carlos Maria Vásquez Gutiérrez. 3ª ed. São Paulo: Paulinas, 2010. (Coleção Religião e Cultura)

- Por Ivan Aragão

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