Mário Quintana: o poeta das coisas simples
- Pugna!
- 2 de out. de 2020
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"Todos esses que aí estão/ Atravancando meu caminho,/ Eles passarão.../ Eu passarinho!" Desde o surgimento das criações literárias e poéticas brasileiras, o classicismo e a busca por obras perfeitas, com linguagem rebuscada e a retratação de temas que eram, muitas vezes, inacessíveis e incompreensíveis para grande parte da população restringiram a real beleza da expressão artística. Porém, tudo mudou com o movimento modernista, que buscava valorizar o cenário brasileiro, a língua portuguesa e a poesia desregrada, com versos livres do espartilho que era o rigor gramatical e métrico. No entanto, a mistura entre sentimentos profundos e cenas cotidianas só foi valorizada na segunda geração desse movimento, com Carlos Drummond de Andrade e Mário Quintana, o verdadeiro "poeta das coisas simples". Quer saber um pouco mais sobre a vida e a obra desse grande autor? Vem comigo!
Mário de Miranda Quintana nasceu no dia 30 de julho de 1906 na cidade de Alegrete, no Rio Grande do Sul. Filho de um farmacêutico com loja própria, Celso, e de uma dona de casa, Virgínia, Mário cresceu em uma família nuclear, por quem foi alfabetizado e ensinado um pouco de francês. Em 1919, Mário foi estudar no Colégio Militar de Porto Alegre. Lá, ele começou a escrever seus primeiros textos jornalísticos e literários, que foram publicados na revista Hyolea, fundada pelos alunos do colégio.
Depois de terminar seu ensino básico, Mário trabalhou em uma livraria na capital por menos tempo que o esperado, pois teve que retornar a Alegrete para trabalhar com os pais na farmácia. Ele continuou a escrever, publicando pequenos textos em jornais locais com o pseudônimo "JB", cuja razão de uso é desconhecida até hoje. Entramos agora em um dos momentos mais delicados da vida de Mário, um momento de vitória e perda, satisfação e solidão pura. Em 1926, ele perdeu a mãe e, no ano seguinte, o pai. Entre as duas mortes, ele havia escrito um conto chamado "A Sétima Passagem", que acabou sendo premiado em um concurso do jornal estadual Diário de Notícias.
Mário começou sua carreira jornalística após sua recuperação perante os eventos supracitados, em 1929, no diário Estado do Rio Grande, no jornal Correio do Povo e na Revista Globo, simultaneamente. Com o impacto internacional do crash da bolsa de valores de Nova York e empolgado pela Revolução de 30, Mário largou seus empregos e foi ao Rio de Janeiro servir no sétimo batalhão de caçadores de Porto Alegre. Seis meses depois, ele volta à sua terra e retoma suas atividades profissionais, que dessa vez também incluíam o trabalho de tradutor da Editora Globo.
Com o inglês ensinado na escola e o francês aprendido com os pais, Mário traduziu mais de cem livros escritos por autores como Marcel Proust, Virginia Woolf, Voltaire e Giovanni Papini. Em 1940, Mário finalmente lança sua primeira obra literária: "A rua dos cataventos", uma coleção de sonetos com temáticas aparentemente infantis, mas que utilizavam a inocência e a simplicidade das cenas de infância para discutir temas como a morte e a solidão. O poema titular do livro é exposto abaixo:
"Da vez primeira em que me assassinaram,
Perdi um jeito de sorrir que eu tinha.
Depois, a cada vez que me mataram,
Foram levando qualquer coisa minha.
Hoje, dos meu cadáveres eu sou
O mais desnudo, o que não tem mais nada.
Arde um toco de Vela amarelada,
Como único bem que me ficou.
Vinde! Corvos, chacais, ladrões de estrada!
Pois dessa mão avaramente dunca
Não haverão de arracar a luz sagrada!
Aves da noite! Asas do horror! Voejai!
Que a luz trêmula e triste como um ai,
A luz de um morto não se apaga nunca!"
Esse texto me toca de uma forma bastante atual e familiar, como se Quintana houvesse escrito essas palavras sabendo exatamente o que se passa pela minha cabeça e, imagino eu, na de muitos outros jovens. O tema principal do poema é a evolução pessoal, também conhecida como maturidade, a fim de estabelecer um bem-estar entre o indivíduo e a sociedade, o extremo contrário da satisfação do indivíduo consigo mesmo. Isso se torna evidente quando observamos a escolha visceral da linguagem, que quando interpretada ao pé da letra não faria muito sentido. Assassinaram o eu lírico, fizeram com que ele perdesse sua inocência e paz com cada crítica feita a seu comportamento, cada quebra de confiança e humilhação passada por ele. O assassinaram: ele agora é um cadáver, uma alma que se esvaziou por tristeza, decepção e solidão, porém ele ainda brilha aos olhos daqueles que o aceitavam.
A recepção do público foi boa, mas não o bastante para fazer com que Mário continuasse a escrever ardentemente, o que acabou sendo mais apropriado para seu estilo: ao contrário da maioria dos escritores da época, ele escrevia livremente e só ao realmente sentir algo especial, não preenchia o livro de poemas feitos com velocidade e sem atenção. Seis anos depois de "A rua dos cataventos", foi publicado "Canções", uma coleção de poemas mais livres e modernistas que expressavam emoções simples ou complexas de forma subjetiva, pode-se dizer que até mesmo distraída e sem compromisso. Abaixo, temos "Canção do Dia de Sempre", um dos poemas mais famosos da coleção:
"Tão bom viver dia a dia…
A vida, assim, jamais cansa…
Viver tão só de momentos
Como essas nuvens do céu…
E só ganhar, toda a vida,
Inexperiência.., esperança…
E a rosa louca dos ventos
Presa à copa do chapéu.
Nunca dês um nome a um rio:
Sempre é outro rio a passar.
Nada jamais continua,
Tudo vai recomeçar!
E sem nenhuma lembrança
Das outras vezes perdidas,
Atiro a rosa do sonho
Nas tuas mãos distraídas…"
Na minha opinião, não há descrição mais precisa do estilo de vida e da personalidade de Mário que essa canção. Ele nunca teve filhos, esposas ou parceiros amorosos conhecidos. Seu cotidiano consistia na moradia em hotéis, no amor ao trabalho, na felicidade trazida pelas conversas com amigos e na observação da simplicidade, que para ele era tão aparente, da vida. O poema mostra exatamente a concepção de que a vida deve ser celebrada por ser passageira, pois cada momento, frustrante ou eufórico, acaba tendo significado e trazendo esperança.
Dois anos depois, foi lançado "Sapato Florido", uma coletânea de poemas mais curtos, a maioria com apenas uma estrofe completa. Tom coloquial, ambiguidade de mensagem e diversidade temática são as características principais dessa fase da carreira de Quintana. O poema que mais se destaca é "Envelhecer", uma ode às virtudes da falta de experiências futuras e o excesso de aventuras passadas:
"Antes, todos os caminhos iam.
Agora todos os caminhos vêm
A casa é acolhedora, os livros poucos.
E eu mesmo preparo o chá para os fantasmas."
Quintana continuou fazendo um trabalho único e exímio, mas só foi reconhecido pela crítica literária em 1966, quando ganhou o Prêmio Fernando Chinaglia, da União Brasileira dos Escritores por uma de suas antologias poéticas. A partir daí, choveram prêmios na carequinha do nosso querido poeta. A medalha Negrinho do Pastoreio, o prêmio Machado de Assis e o prêmio Jabuti estão entre as conquistas de Mário. No entanto, houve algo que ele não conseguiu conquistar: uma cadeira na Academia Brasileira de Letras.
Não foi por falta de tentativa. Mário tentou três vezes, mas devido à burocracia das votações da Academia, ele não era eleito. Os membros o chamaram para que ele se candidatasse mais uma vez, prometendo uma cadeira garantida, entretanto ele recusou. Refletindo acerca dessa situação, é impossível não lembrar do "Poeminho do Contra", que nesse contexto parece uma sutil farpa:
"Todos esses que aí estão
Atravancando meu caminho,
Eles passarão...
Eu passarinho!"
E passarinho ele foi até o fim de sua vida, inspirando amantes e não amantes de poesia a ver o mundo de maneira simples e esperançosa. Não são precisas grandes rimas, palavras quase em desuso, métricas perfeitas ou analogias à mitologia grega para que um poema seja perfeito. Na verdade, é melhor ainda quando ele é objetivo, sem perder sua ambiguidade, sua beleza e sua verdade. Quintana me mostrou isso várias vezes, leitor, e espero que ele te mostre isso ao longo da sua vida também.
-Por Ana Ferreira da Motta Costa
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