O Avesso das Coisas
- Pugna!
- 29 de jun. de 2020
- 3 min de leitura

O artigo de hoje será um pouco diferente. Traremos a participação de um homem trans com seu breve relato de vida. Que possamos sentir um pouco do que ele passou através das suas palavras. Que possamos refletir um pouco mais sobre a vida de tantos que, assim como ele, vivenciam com tanta dificuldade algo que deveria ser natural.
Quando se é criança a magia sempre acontece, de uma hora pra outra apesar de tudo que haviam dito sobre você, se acoberta de um tom pessoal, porque existe uma idade onde se é permitido sonhar. Um simples banho de chuveiro vira cascata, portal de pirata e todo mundo acha graça. "Que criança danada!"
Quando eu era criança descobri que menina pode ser menino e menino, menina. Descobri também que havia algo errado comigo, meu corpo não estava adequado. Interessante foi que nunca me questionei do contrário! Nunca pensei que eu estivesse errado pro meu corpo. Sabe por que não? Porque certas prerrogativas são impossíveis. O corpo pode animar o espírito? O tangível meter a mão no intangível? Pode o não-submerso afogar o submerso? Pode a lua pousar no homem? A criança sabe disso. E eu sabia que o erro não era meu e sim naquele corpo que não era o que eu sou.
O corpo tem que corresponder ao ser. "Mainha, onde está meu pinto?" Aos três anos perguntei pra nunca mais indagar nem a mim mesmo sobre qualquer coisa do tipo. Pois ali mesmo descobri que o mundo não podia saber que aquilo acontecia dentro de mim. Veja bem, eu não tentei deixar de ser, eu criança entendi que teria que esconder. De toda forma que pudesse. Ninguém poderia saber que eu na verdade não era aquele eu que estavam vendo no vestido, na boneca, no laço enfeitado. Aquele eu era até engraçado, caso eu pudesse brincar disso também. E eu brinvava sem deixar de ser, mas junto vinha o peso de ser chamado de menina, de coisa de menina, de brinquedo de menina. Minha criança sabia que era tudo bobagem! "Como é bom jogar bola e brincar de barbie! Quanta limitação naquilo que não sabem", pensava eu em forma de choro, de engasgo e de agonias noturnas.
E crescer foi aquele rasgar-se e remendar-se como normalmente é, mas eu me sentia rasgado e costurado pelo avesso das coisas, como se não estivesse realmente lá. Tentando corresponder sem ser correspondido. Me enfeitando e me sentindo travestido. Eu dizia quando me maquiava: "me sinto um travesti". Eu era mesmo, travesti ao contrário. Passei a observar essas moças que se chamam de travestis e, sempre que via uma, queria correr e abraçar. Uma vez na igreja uma travesti quis entrar e beber água, o diácono não deixou. "Se ela não pode, então eu tambem não posso", gritei. Rompi, foi como se tivesse rasgado minha mocidade. Fui ser errante, desviado. Ainda assim a dor e a depressão não me abandonaram. Vi meus melhores anos passando e eu chupando a bala com o papel. Que saudade tenho de uma adolescência! Sempre me pego sonhando em como seria bom ter começado antes. Ter duvidado do mundo antes. Ter acreditado em mim antes.
Aos 35 anos eu decidi que era chegada a hora da verdade. Meditei, internamente me chamaram de Ulisses. O mundo interno sempre sábio. Ulisses veio ao mundo, mas o mundo foge dele, grita por todo canto que ele não é, não pode, não será. Ulisses, faceiro, responde: "já sou, ja fui e voltei, agora vou". Espero que minhas pegadas sirvam pra nortear outros camaradas.
"Viver é melhor que sonhar
E eu sei que o amor é uma coisa boa..."
Essa bagagem que eu trouxe até aqui, sozinho, me fez solidário a todo mundo que está na luta. Me deixem falar e todos seremos iguais. Nos deixem sonhar e viver. Nos deixem vivos. Nos deixem em paz.
Ulisses Cintra @sendoulisses
- Por Ivan de Aragão e Ulisses Cintra
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