O que você precisa saber antes de meditar
- Pugna!
- 2 de mai. de 2020
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A meditação é o centro das práticas de quase todas as religiões orientais. Podemos incluir nessa lista facilmente o budismo, o taoísmo e o yôga. Sim, o yôga que nós ocidentais vemos nas nossas academias é apenas a ponta do iceberg, a dimensão física de uma tradição milenar que se apoia num vasto e interessantíssimo ramo de conhecimento entranhado nas raízes da religião hindu. Inclusive no ramo acadêmico o yôga tem despertado as atenções de diversos pesquisadores, tanto nas ciências humanas quanto nas ciências biológicas. No âmbito das humanidades, destaco aqui o trabalho do professor Roberto Simões (PUC-SP), que explora a complexidade dos elementos de religiosidade que podem ser encontrados na prática do yôga (consequentemente ele acaba tratando da meditação), bem como as transformações, adaptações e impactos da tradição yogue na sociedade brasileira. Já no âmbito das ciências biológicas, são incontáveis os trabalhos realizados com o intuito de aprofundar os conhecimentos sobre os efeitos da meditação no cérebro humano, além dos benefícios dessa prática para a nossa saúde física e tudo mais. O famigerado mindfulness é algo que surge nesse embalo. Eu diria que a exploração meramente biológica do tema muitas vezes ignora certos aspectos importantes, do mesmo jeito que o estudo analítico das ciências humanas pode deixar de fora algumas informações que somente um praticante pode nos oferecer na hora de esclarecer algumas dúvidas recorrentes para quem deseja se inserir nessa tradição. Então, através deste texto, meu objetivo é expor a perspectiva de um praticante sobre o assunto, mergulhando um pouco mais nesse universo.
Vamos lá! Se você se interessa por meditação, é fundamental saber as premissas que estão por trás da prática. O próprio substantivo “meditação” tem diversos sentidos na língua portuguesa, que geralmente estão ligados à ideia de contemplação, de concentração. No entanto, nenhum desses sentidos aproximados oferece uma tradução suficiente para o que o hindu quis dizer com a palavra dhyan ou dhyana, do sânscrito. Do mesmo jeito que a palavra saudade é difícil de traduzir para outras línguas porque reflete a nossa concepção de um sentimento específico que define o estado de quem sente a falta de algo ou alguém, a palavra dhyan se refere a um estado de consciência que nós falantes e pensantes da língua portuguesa sequer chegamos a conceber ou imaginar. E agora? Como eu vou aprender a fazer uma coisa que nem a minha língua possui uma palavra capaz de expressar corretamente? Para isso se faz necessário conhecer um pouco do contexto cultural e intelectual em que essa palavra se originou.
Em primeiro lugar, pense na meditação como um estado de consciência a ser alcançado, um estado de consciência intimamente associado ao que poderíamos chamar de um estado de alerta. A questão é que todos nós, do ponto de vista ocidental, superestimamos o nosso estado de alerta. Um bom teste para desmontar a nossa ilusão de consciência é simplesmente tirar alguns minutos e anotar ou tentar lembrar de todas as coisas que passam pela nossa mente num período de 2 minutos. Se você fizer isso perceberá logo de cara que a sua mente será arrastada por inúmeros assuntos, desde a conta que você tem a pagar hoje até o trabalho da escola que você não fez, o vídeo que você viu pela manhã, a resposta que tem pra dar a alguém no WhatsApp, a música que você está cantarolando mentalmente há duas horas... Esse emaranhado de coisas divide a sua atenção o tempo todo. Para a filosofia oriental isso não é estar alerta, isso é um estado que lembra o de um sono. Essa pessoa que está dormindo acordada é simplesmente levada pela força dos estímulos a que está sendo exposta e todas as suas reações são motivadas pelos sentimentos confusos que surgem desse turbilhão aleatório de pensamentos. Estamos o tempo todo fazendo uma coisa e pensando em outra. Estamos em casa pensando no problema do trabalho e no trabalho sonhando com o sossego que esperamos ter em casa, por exemplo. Nesse estágio fica difícil permanecer em equilíbrio e ver as coisas com a serenidade necessária. Tornamo-nos dispersos e menos eficientes do que poderíamos ser (aqui eu uso o conceito de eficiência para animar nossos ânimos ocidentais).
Esse estado de sono acordado é algo muito grave, pois vai além de um modo de ser prejudicial à vida prática, ele nos prejudica de forma mais profunda e aí entra o aspecto religioso por trás do conceito meditativo. Perceba, se eu não tenho consciência plena nem controle algum sobre o que eu penso ou sinto, por consequência o controle das minhas ações fica também comprometido, eu me torno um escravo da minha própria mente confusa e imparável. Nesse estágio de escravidão, a nossa ignorância é potencializada. Nossas atitudes ignorantes se fortalecem a partir da nossa inconsciência. A partir dessa ideia, a meditação passa a fazer parte do repertório de todas as religiões orientais. Meditar é um ato que não se limita a uma religião específica, mas que para os orientais é indispensável para uma conduta verdadeiramente religiosa. Quando eu alcanço esse estado de alerta meditativo, quando eu não me deixo levar pelos meus pensamentos, quando eu controlo os estímulos que chegam até mim, eu me torno mais reflexivo, eu diminuo ações impulsivas, eu vejo as coisas mais claramente e me torno mais calmo, mais consciente. É como dar um passo rumo à libertação dos meus estados mentais ignorantes.
Não é à toa que a palavra buddha significa algo como aquele que está desperto. Buda (buddha) é um título dado a vários indivíduos que alcançaram maestria nesse estado meditativo, indivíduos que despertaram desse sono da mente pensante, simbolizando simplesmente alguém que se livrou desse estado de ignorância e busca uma conduta mais sábia e consciente de si mesmo. O Buda mais famoso é o príncipe hindu Sidarta Gautama, figura inspiradora do budismo (vale lembrar que o budismo é considerado uma religião sem deuses, as divindades que são cultuadas em determinados países da Ásia são consequências da mescla com as tradições locais pré-existentes). O Buda é um indivíduo que por si só merecia um texto, mas fica para uma outra ocasião. O que nos interessa aqui é perceber que a ideia de despertar está intimamente ligada ao conceito de meditação.
Agora que você já sabe no âmbito teórico o que significa esse despertar ou essa libertação prometida pela meditação, fica fácil de entender o que significam também todos os benefícios que os estudiosos aqui do ocidente têm mencionado quando se fala do assunto, baseados na análise das atividades cerebrais dos meditadores. Falar sobre os estudos científicos acerca da meditação também é um assunto que caberia num texto à parte. Por enquanto, eu quero apenas instigar uma constatação lógica. Pensa comigo, se toda a minha atenção de repente se volta para o presente, se eu consigo ter clareza do meu fluxo de pensamentos e me mantenho consciente para não me submeter aos caprichos deles, eu automaticamente adquiro uma liberdade capaz de apaziguar minha ansiedade sobre aquilo que não está sob meu controle. A tristeza, a raiva, a agressividade, o amor, a alegria, todos os meus sentimentos mudam de perspectiva e o comportamento de um meditador tende a se modificar pouco a pouco, segundo esse novo modo de experimentar o mundo. Meditar é uma atividade a ser praticada constantemente, uma tarefa para a vida.
Existem diversas técnicas possíveis para se obter esse estado de consciência meditativa e principalmente para ampliá-lo cada vez mais. As práticas mais antigas começam estimulando a consciência corporal. Você usa o corpo como foco da atenção, como se fosse uma espécie de âncora para que a sua mente se ocupe um pouco com aquilo e você consiga se manter no tempo presente. Nessa categoria estão as formas tradicionais de meditação, baseadas no controle da respiração, no foco direcionado para algumas atividades específicas do corpo, como por exemplo os batimentos cardíacos, a realização de posturas físicas, etc. Junto à formas menos conhecidas, saiba que até mesmo a dança pode ser uma grande aliada na meditação. Existe uma das representações do deus Shiva (procure no Google Shiva Nataraja) em que ele aparece dançando com uma roda de fogo ao seu redor, simbolizando a dança cósmica do universo eternamente em movimento. Essa imagem de um deus dançarino não é por acaso. Shiva, segundo a mitologia hindu, tem estreita ligação com o yôga, ele representa o princípio divino que teria ensinado tal sabedoria aos homens. Ainda sobre a dança, no sufismo (um ramo místico do islamismo) é bastante comum a dança aparecer, entre outras práticas típicas da religião, como um recurso meditativo que incentiva a comunhão com Alá. Em suma, toda atividade que favoreça a sua concentração plena no tempo presente é, de certo modo, uma atividade meditativa.
Neste ponto da conversa, diante de algumas referências a deuses e religiões, você que me lê pode estar se perguntando se teria algum problema praticar a meditação e ser cristão, por exemplo (sempre recebo perguntas sobre isso). Eu respondo, não existe nenhum impedimento teológico que lhe impeça de praticar a meditação, em outras palavras, nenhum impedimento existe à busca de consciência diante da vida (lembrem do “orai e vigiai” bíblico e pode ser que consigam perceber uma certa relação de sentido). Não importa a sua crença. Apesar de ser uma premissa presente em diversas religiões, a meditação não depende de doutrinas ou crenças, pois se constitui numa ferramenta passível de ser utilizada em diversos contextos. Justamente por essa independência da meditação é que no ocidente se desenvolveram técnicas numa perspectiva de ênfase técnica, apartada da religião, como o caso da mindfulness. Fica claro que toda a resistência que ainda existe em alguns núcleos do cristianismo brasileiro é unicamente baseada em preconceitos oriundos de um desconhecimento sobre a coisa.
Numa perspectiva mais ampla historicamente, é possível encontrar no próprio cristianismo alguns vestígios de práticas meditativas no passado. E a própria reza ou oração é um instrumento meditativo na medida em que, na teoria, exige atenção e consciência em toda realização do ato. Na minha opinião, o próprio Jesus que nos é apresentado nos evangelhos canônicos possui algumas características típicas de um meditador, como a profunda calma diante de situações extremas, o desenvolvimento de uma sólida empatia e a valorização da vida além de qualquer convenção social. Características notáveis entre os três mais famosos meditadores que conhecemos na antiguidade: Sócrates, Buda e Jesus. Os três questionaram as convenções sociais das suas respectivas sociedades e só tivemos acesso a história deles pela escrita dos discípulos. Sócrates pôs os valores de Atenas pelo avesso, Buda recusou os deuses, a discriminação social das castas e alguns ensinamentos chegam até mesmo a apontar críticas para com a discriminação da mulher, Jesus se opôs a diversos ensinamentos da casta sacerdotal judaica e não por acaso os três foram acusados de desvirtuar os costumes. Os três foram tidos como hereges e transgressores.
Mas por que eu estou falando sobre as convenções sociais? Talvez você esteja se perguntando. É que existe um conceito fundamental por trás dessa postura. Permita-me explicar. A noção de verdade para as tradições orientais está intimamente relacionada a ideia de eternidade ou de temporalidade. Se algo é transitório, é algo que não detem a “verdade” em sentido mais profundo, a verdade nessa perspectiva diz respeito ao que é eterno, ao que é real de fato, logo o nosso corpo físico e uma série de coisas no mundo dos sentidos são tidos como sendo algo passageiro, são como elementos de finitude e ilusão. Nossos sentimentos, nossa mente e nossa personalidade também são coisas transitórias e, portanto, completamente reduzidas em importância. O que acontece é que meditar nos faz mais conscientes dessa verdade, da inevitabilidade dessa condição finita do nosso corpo, ao mesmo tempo em que nos deixa mais tranquilos quanto a isso, mais em paz para com as coisas que nos abatem, como a doença, a velhice e a maior de todas, a morte. Tendo isso em vista não fica muito mais fácil de entender a célebre frase de Jesus sobre a “verdade que vos libertará”? Uma frase tão profunda e tão maculada por interpretações estúpidas no decorrer dos séculos, mas que um meditante compreende perfeitamente.
Um meditador deixa de se identificar com o próprio corpo e passa a perceber a própria noção de vida como algo maior do que ele. Naturalmente, assim que um indivíduo alcança esse despertar meditativo, ele para de julgar as pessoas pelas aparências, pelo sexo ou qualquer outro critério baseado em coisas transitórias. Para o meditante, isso não serve de nada, é apenas uma convenção social que somente merece alguma consideração na medida em que não prejudique ninguém. O respeito pela vida é a principal consequência da meditação. De repente você percebe aquilo que lhe torna igual aos outros seres deste planeta, a sua condição de ser vivente. E é por isso que a empatia dos meditadores cresce consideravelmente. Todos nós fazemos parte da mesma vida, todos respiramos o mesmo ar. O próprio corpo é visto com respeito, mas não como centro da própria identidade. Entendeu o motivo da aparência uniforme dos monges budistas? Entendeu as longas madeixas e a barba comprida e relaxada dos yogues? Entendeu a origem do comportamento deles quando se recusam, na medida do possível, a machucar ou agredir outros seres? Por esse mesmo motivo o vegetarianismo é tão comum entre tradições religiosas adeptas da meditação. Ele se baseia numa percepção sobre o mesmo princípio, apesar de não ser uma regra, pois aqui entra uma outra coisa importantíssima do estado de consciência plena: a escolha consciente. Desde que seja uma escolha consciente e não uma ação motivada pela ignorância, tudo pode ser conciliado. Até mesmo um pacífico monge pode se tornar um guerreiro mortal, como os monges chineses que foram determinantes para o desenvolvimento das artes marciais. A consciência orienta a moralidade.
Tudo que você precisa saber antes de meditar é que se trata de algo muito maior do que um mero remédio para estresse. É uma atitude diante da vida, uma postura diante da existência e, acima de tudo, tal postura não é transmitida por palavras. Você deve buscar a sua própria experiência. Nós podemos falar sobre o assunto apenas como quem aponta uma determinada direção a seguir, a experiência própria é encorajada e ela é toda sua, aproveite como puder. Se você deseja mesmo se aventurar nesse caminho, considere a meditação como um fim, não como um meio. Até porque meditar esperando resultados pode simplesmente lhe deixar ansioso pelo “prêmio” no final. Nesse desvio você pode acabar se frustrando e não alcançando o que realmente importa com tudo isso. Para os que estão começando, existem diversas técnicas que podem ajudar, cada uma com um grau de dificuldade e de profundidade específico. Alguns podem ter bons resultados com a entoação de mantras, outros podem começar pelo yôga, técnicas de mindfulness... Tudo vai depender da sua afinidade com a técnica. Existem alguns aplicativos com meditações guiadas em que o foco e a capacidade de visualização imaginativa são estimulados, antes do aprendiz se lançar na busca pela tão famigerada ausência de pensamentos.
O não-pensar não é o mais importante. Existem sim, alguns estados meditativos em que a sensação de plenitude e vazio mental é tão profunda que nenhum pensamento parece existir. Esses estados mentais são os responsáveis pelo grande interesse dos cientistas no assunto, pois a atividade cerebral é bastante peculiar, com certas descargas hormonais proporcionando sensações de prazer e relaxamento, a ponto de alguns yogues e monges afirmarem, em tom de brincadeira, que a meditação é o entorpecente mais eficiente para fornecer satisfação ao ser humano. Para os que não gostam de ouvir narrações ou já querem tentar algo mais independente, recomendo um canal no YouTube chamado Mettaverse, lá você pode encontrar áudios relaxantes baseados em algumas frequências sonoras específicas para ajudar a induzir certos estados mentais mais facilmente. O mais importante é que você pode começar sua história como meditador agora mesmo, seja com o auxílio da tecnologia, seja na tranquilidade do seu quarto, no jardim ou embaixo de uma árvore qualquer. Tão somente feche os seus olhos, mantenha a coluna ereta e esteja atento. Permaneça consciente. Até o próximo texto.
-Por Ivan de Aragão
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