top of page
  • Black Facebook Icon
  • Black Instagram Icon

Por Trás da Sala de Visitas

  • Foto do escritor: Pugna!
    Pugna!
  • 17 de abr. de 2020
  • 5 min de leitura

Maria Carolina de Jesus: mulher, negra, mãe solteira, pobre, catadora de papel e escritora. Sim, escritora. Maria Carolina “é o som, é a cor, é o suor, é a dose mais forte e lenta de uma gente que ri quando deve chorar e não vive, apenas aguenta” como disse Milton Nascimento. Uma das mais importantes escritoras brasileiras- apesar de desconhecida por muitos -frequentou a escola apenas até o segundo ano do Ensino Fundamental, o que já foi suficiente para ela que ela engraçasse na literatura. Carolina era moradora da favela do Canindé (SP) e começou a escrever um diário para denunciar a sua realidade como favelada e como uma das personagens da vida por trás da sala de vistas, ou, como ela mesmo chamou, do “Quarto de Despejo” (1).


O que é o “Quarto de Despejo”? É uma metáfora que vai além do título do diário de Maria Carolina de Jesus; ela invade a vida real e retrata as condições de sobrevivência de personagens verídicos protagonistas -ou talvez rebaixados a figurantes- de histórias de luta, sofrimento e injustiças. É nesse quarto onde é descartado tudo aquilo que não apresenta valor. E, volto a dizer, esse quarto existe. Basta olhar através da janela, da bolha na qual somos inseridos, e ele estará lá abrigando milhares de famílias (2).


Primeiro, uma das provocações feitas no livro é referente à relação entre os políticos e os moradores da favela. A autora fala que o poder público está sempre distante do povo (3). No entanto, em períodos de eleição os políticos resolvem se aproximar, mas não passa de puro interesse. A partir desse tópico, podemos iniciar algumas reflexões:


1) Vivemos em uma democracia -origem no grego demokratía que é composta por demos (que significa povo) e kratos (que significa poder)- ou seja, em uma forma de governo na qual a soberania é exercida pelo povo. Porém, até quando, na prática, o povo será apenas uma escada para sustentar um governo para poucos?


2) Toda estrutura social, política e econômica brasileira tem raízes bem fincadas no nosso passado histórico. Essas heranças muitas vezes limitam o nosso avanço e aumentam as desigualdades que insistem em permear nossa realidade. Dentro desse contexto, eu pergunto: até quando esse tipo de “coronelismo” vai ser sustentado no meio político?


Dando continuidade às abordagens da obra, um dos aspectos bastante enfatizado durante toda a narrativa é a questão da fome (4). Como o livro trata-se de um diário e Carolina descreve muitos dos seus dias, a fome é manifestada como parte da rotina, visto que assombra a personagem todos os dias. A necessidade de comer é a motivação para as longas horas catando papel, para o mau humor recorrente, para a limitada perspectiva de vida e para a dor que atormenta a alma e não passa nunca. A situação mostra-se ainda mais complicada diante da necessidade da personagem de garantir não só seu alimento, mas também o dos seus filhos. Maria Carolina tem três filhos -João José, José Carlos e Vera Eunice-, os quais sempre criou sozinha, representando, assim, uma história que se repete na vida de muitas mulheres.


Na representação de seus filhos, a autora também traz outras abordagens intrigantes (5). Diversas vezes as crianças ficam doentes por conta da falta de higiene que a localidade é submetida; seu filho mais velho, João José, em várias passagens do diário se envolve em confusões por não aceitar a maneira como eles vivem e querer melhorar de vida; e a retratação da convivência conflituosa de Carolina e seus filhos com a vizinhança são algumas passagens interessantes e chocantes da narrativa. Sobre o último tópico exemplificado -a rivalidade que existia em meio à vizinhança-, além das fofocas que eram espalhadas e das brigas frequentes, a situação era tão extrema que em uma das passagens noticiadas pela narradora, ela diz que um dos vizinhos jogou excrementos nos filhos dela. Ou seja, as condições de vida não eram boas e a comunidade na qual ela vivia, ao invés de nutrir uma parceria, era bastante conflituosa (6).


Apesar de todas as adversidades, Maria Carolina de Jesus novamente seguia a música de Milton Nascimento, “mas é preciso ter força (7), é preciso ter raça, é preciso ter gana sempre.”. Ela sempre acreditou no poder das palavras e não desistiu de denunciar todos os problemas que a cercavam (8). Conhecer esse exemplo de mulher e sua obra, que além de uma diário pessoal é um diário de uma grande parcela da sociedade, nos fazem refletir sobre temas importantes e esse tipo de provocação alimenta a vontade de mudança.

(1) “Escrevo a miséria e a vida infausta dos favelados. Eu era revoltada, não acreditava em ninguém. Odiava os políticos e os patrões, porque o meu sonho era escrever e o pobre não pode ter ideal nobre. Eu sabia que ia angariar inimigos, porque ninguém está habituado a esse tipo de literatura. Seja o que Deus quiser. Eu escrevi a realidade.”

(2) “Em 1948, quando começaram a demolir as casas térreas para construir os edifícios, nós, os pobres que residíamos nas habitações coletivas, fomos despejados e ficamos residindo debaixo das pontes. É por isso que eu denomino que a favela é o quarto de despejo de uma cidade. Nós, os pobres, somos os trastes velhos.”

(3) “Quando eu era menina o meu sonho era ser homem para defender o Brasil, porque eu lia a história do Brasil e ficava sabendo que existia guerra, só lia os nomes masculinos como defensores da pátria então eu dizia para minha mãe:

– Porque a senhora não faz eu virar homem?

Ela dizia:

– Se você passar por debaixo do arco-íris você vira homem.

Quando o arco-íris surgia eu ia correndo na sua direção mas o arco-íris estava sempre distanciando. Igual os políticos distante de povo. Eu cansava e sentava, depois começa a chorar. Mas o povo não deve cansar, não deve chorar, deve lutar para melhorar o Brasil para nossos filhos não sofrer o que estamos sofrendo. Eu voltava e dizia para minha mãe:

– O arco-íris foge de mim.”

(4) “A tontura da fome é pior do que a do álcool. A tontura do álcool nos impele a cantar. Mas a da fome nos faz tremer. Percebi que é horrível ter só ar dentro do estômago.”

(5) “As crianças ricas brincam nos jardins com seus brinquedos prediletos. E as crianças pobres acompanham as mães a pedirem esmolas pelas ruas. Que desigualdades trágicas e que brincadeira do destino.”

(6) “A única coisa que não existe na favela é solidariedade.”

(7) “Mas eu sou forte! Não deixo nada impressionar-me profundamente. Não me abato.”

(8) “Gosto de manusear um livro. O livro é a melhor invenção do homem.”


-Por Giulia Santana

Comentarios


bottom of page