Redes Sociais e a "Política do Cancelamento"
- Pugna!
- 6 de mai. de 2020
- 5 min de leitura

Em meio à Guerra Fria, quando os Estados Unidos e a União Soviética lutavam para ter o título de potência hegemônica mundial, surgiu uma ferramenta tida hoje como indispensável, a internet. O primeiro protótipo de uma rede de internet foi criado pelos Estados Unidos para estabelecer um sistema de conexão entre laboratórios e centros de pesquisa sem interferência dos soviéticos. Então, em 1969, foi enviado o primeiro e-mail entre a Universidade da California e o Instituto de Pesquisa de Stanford. No entanto, a popularização da internet ocorreu a partir da década de 90 quando o britânico Tim Berners-Lee desenvolveu o primeiro navegador, a World Wide Web (www), e muitos outros surgiram, com o Google Chrome e Internet Explorer. No Brasil, o acesso à internet foi expandido em 1997 quando foram criadas as “redes locais de conexão”, até que, em 2011, segundo o Ministério da Ciência e Tecnologia, aproximadamente 80% da população teve acesso à internet. Mas, sabemos que o uso da internet não é amplamente democratizado e muitos brasileiros não têm a chance de utilizar essa ferramenta. Porém, não é disso que falaremos hoje. Fiz essa introdução por acreditar ser uma história que poucos conhecem e um fato interessante a ser compartilhado, mas o ponto principal do artigo é uma das iniciativas, que está em alta nos últimos dias, geradas pelo uso da internet -principalmente das redes sociais.
A também conhecida como “cultura do cancelamento” é um termo que caracteriza a atitude de usuários das redes sociais os quais boicotam -parando de seguir, compartilhando o acontecido ou fazendo comentários de repúdio- pessoas públicas ou empresas que proferem discursos ou agem de maneira inaceitável. Essa forma de expressão tomou tamanha proporção que foi eleita em 2019 como palavra/termo do ano pelo Dicionário Macquarie. Mas, será que essa iniciativa dos internautas é boa ou ruim? Apesar de ser uma mobilização em prol da conscientização relacionada a algumas posturas e posicionamentos ideológicos importantes de serem discutidos, muitas pessoas acham que a internet é uma “terra sem dono” e ultrapassam os limites. Todavia, isso anula a importância do movimento? Vamos conversar sobre alguns fatos e refletir sobre a situação.
Já que as pessoas “canceladas” nas redes sociais são aquelas que agem ou pensam de maneira “incorreta”, temos que nos questionar algo: o que é o “certo” e o que é o “errado”? É claro que alguém pode pensar que a resposta é óbvia, como “errado é roubar e matar” ou “certo é seguir as leis”. Para começar essa discussão, quero trazer uma referência bastante conhecida, a história de Jean Valdejan. Esse homem, retratado na obra literária Os Miseráveis, motivado pela fome que assombrava ele e seus irmão, roubou um pedaço de pão e foi condenado a cinco anos de prisão. Roubar é de fato a definição certa de “errado”? É algo para pensarmos. Ao mesmo tempo que o relativismo é importante no respeito às diferenças, o pensamento e posicionamento críticos também são. Além disso, muitos veem essas definições como um produto cultural, então cada cultura tem sua própria noção de “certo” e “errado”. Às vezes podem existir formas diferentes de analisar as situações e os rótulos ficam confusos de serem estabelecidos; o que não suprime a necessidade de debatermos e criarmos opiniões sobre diversos assuntos. Mas as pessoas sentem a necessidade de impor rótulos nas pessoas e nas situações baseadas unicamente nas suas próprias opiniões. Essas classificações podem ser então uma mistura da visão constitucional, cultural e subjetiva de uma pessoa. No mundo da internet funciona como?
Existem alguns pontos a serem analisados quando trazemos esse questionamento ao âmbito das redes sociais. A princípio, podemos começar analisando a exigência dos internautas pela postura sempre “perfeita” das figuras públicas que eles acompanham. Essa cobrança é um tanto injusta, visto que a expectativa de uma pessoa perfeita é criada baseada nas opiniões daquele que está assistindo, e uma boa demonstração de que as pessoas têm a tendência de projetar suas expectativas e noções de perfeição nos outros para abafarem suas frustrações internas. Ou seja, ao invés de reconhecer suas atitudes “imperfeita” é mais fácil apontar as dos outros. Tal situação carrega uma problemática gigantesca pois aqueles que são alvos das insinuações maldosas ficam abalados emocionalmente e aqueles que as fazem demonstram que também não estão equilibrados psicologicamente de alguma maneira. De fato é mais fácil negligenciar os próprios erros e apontar os do outro, ainda mais se esse “outro” em questão está em constante exposição nas redes sociais e você se “esconde” atrás de uma tela de celular, porém esse ato cria uma cadeia de consequências negativas que cada vez está mais intensa. Por sua vez, esse é outro ponto importante a ser observado: a tela de um celular ou de um computador se tornou um escudo para essas pessoas. Isso faz com que as redes sociais sejam um ambiente cada vez mais hostil e a área de comentários deixa de ser um espaço para interação e assume um cenário de troca de ofensas. Para vocês terem uma noção, estima-se que no Facebook existe aproximadamente 270 milhões de contas “fake”, um dado que revela a crença de muitas pessoas no uso das redes como “escudo”. Essa sensação de ausência de penalização diante da proteção de estar escondido atrás da tela de celular, citando as ideias de Durkheim, é uma das principais razões para a anomia no âmbito virtual. No entanto, é importante ressaltar que, apesar de muitos pensarem diferente, essa “ausência de penalização” não é real. A internet não é a Terra do Nunca e a conduta de seus usuários podem ser penalizadas tanto de maneira jurídica como também social. Exemplo da primeira situação é o crime de Injúria, previsto no artigo 140 do Código Penal, que pune indivíduos que ofendem -por meio de insultos, por exemplo- a dignidade de alguém. Já no segundo caso, há o exemplo do funcionário da empresa Latam que foi demitido após ter aparecido em um vídeo divulgado nas redes sociais, no qual ele e outros homens constrangeram uma mulher durante a Copa do Mundo na Rússia.
Em segundo lugar, saindo da análise dos usuários e observando o comportamento dos produtores de conteúdo, não podemos deixar de lado que muitos influenciadores e figuras públicas, os quais têm um alcance gigantesco de seguidores, podem também incentivar o estabelecimento de um ambiente negativo nas redes sociais ao fazerem discursos irresponsáveis, como foi o caso da influenciadora Gabriela Pugliesi. Em meio à pandemia do COVID-19, a influenciadora quebrou o isolamento social, fez uma festa com as amigas em sua casa e postou vídeos do acontecido minimizando a necessidade do distanciamento. Além desse fato específico, existem vários outros posicionamentos problemáticos que são disseminados nas redes, como a valorização da magreza e a demonização da comida por parte das “musas fitness” ou a cultura da vida perfeita e da constante felicidade propagada por muitos influenciadores. Toda essa conjuntura é extremamente perigosa porque muitos espectadores realmente se espelham nas pessoas que eles acompanham virtualmente, logo, as redes sociais se apresentam como um ambiente de banalização de atitudes irresponsáveis, de incentivo a práticas bulímicas e de gatilho para distúrbios psicológicos. Por esses motivos, surgiu o movimento do “cancelamento” para repreender essas atitudes e posicionamentos. No entanto, uma política que deveria ter como base a conscientização dos usuários das redes e a discussões de assuntos importantes, transformou-se em uma prática de linchamentos virtuais e uma abertura para discursos de ódio. Então, o que deveria ser uma solução, uma forma de moderador e uma motivação de reflexões, passou a ser uma nova problemática. Na situação de Pugliesi, por exemplo, seu ato de impudência mereceu ser evidenciado com um exemplo a não ser seguido, porém, não é justificável ela ter sido alvo de ameaças sérias, diversos xingamentos extremamente ofensivos e de outras atitudes desumanas por parte de vários internautas. Esse tipo de punição tira o foco da conscientização social e enfatiza discursos de ódio e uma situação de linchamento virtual, consequentemente, as redes sociais firma-se como um meio prejudicial.
Fez sentindo para você? Vamos refletir um pouquinho sobre o modo como usamos a internet e, somente assim, ela será uma ferramenta cada vez mais benéfica.
-Por Giulia Santana
Sugestões de leitura:
Comentários