Sobre a liberdade de expressão e a intolerância
- Pugna!
- 19 de nov. de 2020
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Um pastor jovem e solitário gostava de pregar peças em sua aldeia, já havia se tornado usual que esse menino corresse em direção a vila avisando de um ataque de lobos, porém certa feita realmente ocorreu um ataque e enquanto o menino berrava ensandecido, ninguém foi ajuda-lo. Tal qual na fábula de Esopo, nossas ações têm consequências fora da ficção, nossas liberdades de ação e de expressão têm implicações e, por isso, deverão também ter limites.
No pleno funcionamento de democracias, é imprescindível que as pessoas expressem suas vontades, contudo algumas qualidades de discurso não devem ser toleradas em uma sociedade tolerante. É o que dita o paradoxo da tolerância de Karl Popper, pois, segundo ele, no momento em que a intolerância tem voz, a tolerância está fadada a desaparecer. Em uma tradução livre do que disse o Popper, “A tolerância ilimitada levará ao desaparecimento daprópria tolerância. Se estendemos tolerância ilimitada até àqueles que são intolerantes, se não estamos preparados para defender a sociedade tolerante contra o ataque dos intolerantes, então os tolerantes serão destruídos, juntamente com a tolerância. Nesta formulação não pretendo dizer que devamos sempre suprimir a verbalização de filosofias intolerantes; conquanto que possamos contradizê-las através de discurso racional e combatê-las na opinião pública, censurá-las seria extremamente insensato. Mas devemos reservar o direito de suprimi-las, mesmo através de força; porque poderá facilmente acontecer que os intolerantes se recusem a ter uma discussão racional, ou pior, renunciarem a racionalidade, proibindo os seus seguidores de ouvir argumentos racionais, porque são traiçoeiros, e responder a argumentos com punhos e pistolas. Devemos pois reservar o direito, em nome da tolerância, de não tolerar os intolerantes. Devemos afirmar que qualquer movimento que prega a intolerância está fora da lei, e considerar criminoso o incitamento à intolerância e perseguição, da mesma forma que é criminoso o incitamento ao homicídio, ao rapto ou ao reavivar da escravatura.”

A liberdade de expressão é um valor regional, apesar de existir nominalmente de forma universal, ela tem valores mínimos, mas seu ponto de limite é invariavelmente definido por cada cultura. Desse modo, explica-se diferentes abordagens dos discursos em países igualmente democráticos. Nessa seara, ainda é possível citar como exemplo aquela velha comparação EUA e Brasil. Com a diferença de que a mim reservo o direito de não sofrer da síndrome de vira-lata, tão antiga quanto essa comparação e tão intrínseca ao brasileiro. Acontece que esse narciso às avessas existe arraigado a nossa sociedade, em instituições e pessoas, o que faz com que pensemos que tudo que é nosso é errado, simplesmente por ser diferente. A liberdade nos EUA é o valor mais importante àquela sociedade, mas isso deriva de uma base histórica da nação norte-americana, de sua independência e até de sua colonização.
"Congress shall make no law respecting an establishment of religion, or prohibiting the free exercise thereof; orabridging the freedom of speech, or of the press; or the right of the people peaceably to assemble, and to petitionthe Government for a redress of grievances."
Texto original da primeira emenda
"O congresso não deverá fazer qualquer lei a respeito de um estabelecimento de religião, ou proibir o seu livre exercício; ou restringindo a liberdade de expressão, ou da imprensa; ou o direito das pessoas de se reunirem pacificamente, e de fazerem pedidos ao governo para que sejam feitas reparações de queixas"
Texto traduzido da primeira emenda
Nos Estados Unidos, é pregada a liberdade incondicional, sendo defendida a tese do filósofo Noam Chomsky de que: “se não acreditarmos na liberdade de expressão para pessoas que desprezamos, não acreditamos na liberdade de expressão.”. A visão que é tida nesse país é, de fato, tão interessante quanto desafiadora. Defender o discurso indefensável, valorizar o princípio acima do conteúdo. Lá é também garantida a liberdade de ofender, numa linha de raciocínio semelhante a de Salman Rushdie, que diz que: “sem a liberdade de ofender, não há a liberdade de expressão.”, ou seja, quase um parquinho.
“IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;
V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem;
X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;”
Constituição Federal de 1988, art. 5º
No Brasil, com nossa cordialidade à Sérgio Buarque de Holanda, nós nos damos a liberdade de ser amigos íntimos de desconhecidos, de ser hospitaleiro com o gringo, de sacar uma arma no trânsito e de linchar. A liberdade de expressão ampla e irrestrita no Brasil não é um princípio de nossa sociedade, tanto que a própria constituição traz suas limitações, legítimas, diga-se de passagem. Os limites se fundam em outros direitos constitucionais relevantes resguardados e que são objeto de tutela do direito penal, por meio dos crimes de injúria, calúnia e difamação; os conhecidos crimes contra a honra.
Ainda nessa discussão, quando se permite a intolerância, surgem repressões, sofrimento, autoritarismo e palavras de ordem, como em qualquer regime de exceção ou ditadura. Durante o período da ditadura militar no Brasil ocorreu tudo isso, foi nesse contexto que surgiu a música “Cálice” do compositor Chico Buarque, que compara o sofrimento do povo brasileiro à paixão de Cristo, se utilizando da passagem bíblica de Marcos 14:36. Na música também o autor refere-se ao regime como uma bebida amarga a qual ele não quer engolir, suplicando a Deus para afasta-la dele. Em um país cuja base é a democracia e liberdade não deve aceitar o cálice da opressão.
Queima de cruzes, apelidos raciais, insultos religiosos, retratações bestiais ou ofensivas a minorias raciais são somente exemplos do que ocorre quando o discurso está diretamente ligado à prática da violência. Para o jurista neozelandês Jeremy Waldron, essa é a forma mais fácil de se identificar e gerar limites para a manifestação da intolerância, notar a que grau de distância o discurso está da prática do ato ilícito. Como na visão moralista do caso do pastor de ovelhas, deve-se punir discursos intolerantes, ou as suas consequências serão atemorizantes demais para se enfrentar.
Em síntese, a liberdade de expressão é tal qual o provérbio popular que se usa para orientar as crianças nadando, “Água no umbigo é sinal de perigo”. Existe um limite que não se pode ultrapassar, e caso o seja deverá haver uma contenção, uma advertência, pois caso não o haja, a repressão está fadada a tomar o lugar da tolerância.
Por: Gabriel Tôrres, um defensor da moderação
Referências Bibliográficas
• Tirinha do Armandinho
• https://www.justificando.com/2019/05/03/os-limites-da-liberdade-de-expressao-censura-e-responsabilizacao/
• Constituição Federal de 1988 – Art. 5º
• Texto da primeira emenda (constituição norte-americana) – Wikipédia
• https://observador.pt/opiniao/o-paradoxo-da-tolerancia/
• Fábula de Esopo – o menino e o lobo
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