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Todo camburão tem um toque de navio negreiro, por quê?

  • Foto do escritor: Pugna!
    Pugna!
  • 1 de out. de 2020
  • 6 min de leitura

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O preconceito, no sentido etimológico da palavra: pré, se referindo a algo que vem antes, o anterior e conceito, derivado do latim conseptus, aquilo que se compreende a respeito de algo, tem sua origem natural. A atribuição de estigmas a diferentes grupos sempre ocorreu, do neandertal ao sapiens, pois era uma forma de proteção, um componente auxiliar na escolha entre luta ou fuga. Oshominídeos, grupo de primatas que compreendem os homens e seus ancestrais fósseis, que souberam reconhecer, devido a um preconceito, que sapos muito coloridos ou animais sem patas e sibilantes, cobras, eram perigosos sobreviveram por mais tempo.

Nosso cérebro encurta caminhos, criando catálogos de grupos, generalizando-os, formando estereótipos com base em marcas atribuídas aos diversos grupos sociais, seja na sociedade ou na selva. Isso foi muito útil nos tempos dos caçadores-coletores, mas no tempo da urbe, pode ser perigoso. No aspecto hollywoodiano, filmes, series, quadrinhos e a mídia em geral funcionam usando esses estereótipos para gerar identificação ou criar ódios. A exemplo disso, temos: a asiática que luta artes marciais, o russo ou alemão mal encarado com uma cicatriz no rosto, clássico estereótipo de vilão da pior categoria, o homem forte com uma menor capacidade cognitiva, são dezenas. Até ai não há problema, são estratégias para que seja gerada familiaridade entre o consumidor e a obra, o problema, ao meu ver, está em começar a se atribuir valores e atitudes a pessoas por enquadrá-las em determinados grupos, sem justificativa. A piada da “loira burra” não funcionará se for contada ao russo ou ao alemão, pois esses grupos tem seus próprios estereótipos com os quais tiram sarro. 

É comum que ao se classificar pessoas, animais ou objetos se acentue a diferença entre eles, ignorando as particularidades do indivíduo e as diferenças internas de cada grupo, tá aí o problema da polarização política por exemplo, mas isso fica para outro artigo. Os pesquisadores Robert Rosenthal e Leonore Jacobson demonstram muito bem isso na experiência relatada em seu artigo, “Pygmalion in the classroom”. Um grupo de alunos, escolhidos aleatoriamente, foi posto em uma sala de aula e aos seus professores foi dito que aquele era o grupo mais promissor da turma. Após um ano dessa experiência o grupo, que foi escolhido aleatoriamente, realmente se tornou o grupo com as maiores médias escolares, o resultado foi atribuído ao aumento na autoconfiança dos alunos, que pensaram ser bons, e a atenção a mais que os professores davam aos alunos, pois aqueles achavam que este era o grupo promissor. 

A tábula rasa, tese de John Locke, se prova verdadeira quando pesquisas descobrem que crianças já conseguem diferenciar gênero e etnia a partir dos 6 meses de vida, já atribuem comportamentos a grupos aos dois anos e meio de vida e já reconhecem e demostram preferência a grupos privilegiados com três anos. A frase “uma sociedade racista gera crianças racistas” nunca se provou mais correta. Ainda no mérito de atribuir valores a grupos, sem justificativa, há o teste da boneca, que prova a veracidade dos fatos. Crianças de 3 a 4 anos tendem a preferir bonecas brancas a bonecas negras, atribuindo a estas características como: mais feias e mais malcomportadas. Isso ocorre porque parte do desenvolvimento infantil é observar e aprender com o mundo que veem a sua volta, numa demonstração clara de quão cruel é a nossa sociedade. Devido a isso, ensinar as crianças que o racismo existe e que algumas pessoas são discriminadas por pertencerem a certos grupos, mas que isso é errado, funciona muito melhor que simplesmente ignorar o mundo em que vivemos e não comentar a respeito.

O racismo enquanto perspectiva histórico-sociológica nasceu no século XIX, com os estudos antropométricos e as tentativas de se explicar o porquê de continentes como a África serem subdesenvolvidos e a Europa não. Derivados disso surgiram mais teorias, o darwinismo social, a eugenia e até os estudos de Cesare Lombroso, essas ideias surgiram do espírito da época, o zeitgeist hegeliano, apesar de terem sido científica e juridicamente superadas, ainda há resquícios delas na vida cotidiana. 

Antes do século XIX havia o preconceito, comum e naturalizado, o racismo como tentativa de diminuir, barrar o acesso, ou tornar alguém inferior só existe, institucionalmente, a partir desse século. Claro que o racismo, como termo, abrange uma variedade grande de etnias, nesse aspecto, abre-se espaço para falácias como o “racismo reverso”, todavia no Brasil o termo é utilizado para se referenciar o preconceito contra a cultura afrodescendente e tudo que nela integra. Devido à raiz histórica de nosso país, ao legado maldito da escravidão. Há um claro interesse em desarticular coletivos de defesa ao direito de minorias sociais, como os negros, com dialéticas erísticas que mais causam asco que são de fato efetivas ou logicamente defensáveis. Comenta-se, com frequência, a respeito do fato de ter havido escravidão na África e de os portugueses nunca terem pisado lá para adquirir escravos. Duas afirmações incompatíveis com a verdade, a primeira, que trata sobre a escravidão no continente africano, pode ser analisada sob uma perspectiva social e comparativa, na África, apesar de existirem escravos, estes não configuravam a mão de obra principal do continente, os sistemas incorporavam escravos, mas esses eram uma exceção no quadro social, e a escravidão não era definida por preceitos étnicos. No Brasil, conforme dito pelo Pe. Antonil, jesuíta italiano: “os escravos são as mãos e os pés do senhor de engenho.”, nada era feito na colônia sem a mão de obra africana. A segunda afirmação, mais desarranjada ainda, afirmar que os portugueses nunca pisaram na África é afirmar que lugares como: Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau, Angola e Moçambique se auto colonizaram.


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É necessário realizar uma análise do discurso, pois o preconceito se impregna e reproduz por ele. O racismo explícito surge como uma forma de diferenciação, até mesmo justificativa para regimes malditos como a escravidão, era uma forma de diminuir o empoderamentodos escravizados e a possibilidade de revoltas, principalmente após a revolução do Haiti, que assustou todo o continente, gerando o haitianismo, um fenômeno de medo coletivo, principalmente por parte dos senhores de engenho, de uma revolta dos escravos aos moldes da revolução do Haiti. É, no entanto, hoje em dia uma resposta a herança escravista que torna, em nossa população, a maioria numérica em minoria social. Como consequências desse discursos se acentuam, de acordo com Erwin Goffman, estigmas, marcas sociais implícitas a alguém ou um grupo. Essas, fazem um desfavor a sociedade, mas afetam principalmente as classes mais oprimidas, seja historicamente seja atualmente, com marginalizações e constantes desumanizações, impróprias à justiça.

Como se tentou demonstrar até aqui, a violência está no cerne das nossas estruturas sociais, dos nossos padrões éticos e dos sistemas políticos modernos nas Américas. E permanece com novas funções, pois não se trata mais dessas massas servirem como muleta para o capital, mas de estarem estruturalmente (na lógica interna do capital) e historicamente (conjunturalmente) excluídas do mundo do trabalho. Isto significa dizer que, devido ao atual estágio de desenvolvimento do capitalismo em nível mundial, elas não estão incorporadas na produção de valor, Assim, essa grande massa sobrante é considerada fora-da-lei, e está fora do Direito, ao mesmo tempo que está incluída nele quando é morta ou presa, muitas vezes, impunemente. Tal quadro de mortes, prisões, criminalização se constitui paradigma da necropolítica, conceito do sociólogo angolano Aquile Mbembe que possui uma análise mais específica acerca da noção de biopoder de Foucault, o Estado não só atua como panóptico, e a sociedade não só cria instituições de sequestro, mas também é legitimado por eles quem pode viver e quem não pode, uma vez que proporciona uma distribuição racional da morte através de aparatos em torno da figura do inimigo social e que garante a impunidade daqueles que gerem estas práticas em nome da defesa da sociedade.


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Convém analisar, além disso, a quem interessa que seja deslegitimada a luta negra, o porquê dessa etnia ter sido omitida do processo histórico brasileiro, representados apenas na humilhante condição de escravizados. É incontestável que, de Machado de Assis a Luiz Gama, há em comum o esquecimento oportuno, seja ao se esquecer da cor real do maior escritor lusófono, pois não era possível se esquecer de sua existência, eternizada em suas obras, seja esquecer completamente da figura que, através do direito, lutou contra a escravidão. Tal história branca de nossa nação preta e parda é uma forma de manutenção de privilégios de uma classe dominante. A má-nascença no Brasil tem a cor da escravidão, uma tão semelhante a terra de onde o país extraiu suas riquezas.


Em nós, até a cor é um defeito. Um imperdoável mal de nascença, o estigma de um crime.

Mas nossos críticos se esquecem que essa cor, é a origem da riqueza de milhares de ladrões que nos insultam; que essa cor convencional da escravidão tão semelhante à da terra, abriga sob sua superfície escura, vulcões, onde arde o fogo sagrado da liberdade.


Luiz Gama


Em suma, para a manutenção do poder nas mãos da elite até um homem branco, de tanga, que aos urros luta contra leões, o Tarzan, faz sentido nas estórias de ninar, a história se fez pelo viés do colonizador, mas culpar o passado por nossa realidade é cinismo, ou no mínimo uma grande falta de interesse pela mudança. Nós, enquanto sociedade, precisamos entender que acabar com a escravidão em 1888 não foi o suficiente, precisamos acabar com a mentalidade escravista e aristocrática que rege nosso país, caso contrário, a carne mais barata do mercado continuará sendo a carne negra e todo camburão continuará tendo um pouco de navio negreiro.


Por: Gabriel Tôrres

Referências Bibliográficas:

• O haitianismo no Brasil e o medo de uma onda revolucionária; unicap

• CARDOSO, F. RACISMO E NECROPOLÍTICA: a lógica do genocídio de negros e negras no Brasil contemporâneo, Revista de Políticas Públicas. 15 de março de 2018

• Preconceito: Racismos; Leandro Karnal

• Racismo; Nerdologia

• Rosenthal, Robert, and Lenore Jacobson. "Pygmalionin the classroom." The Urban Review 3, no. 1 (1968)

Recomendações de Leitura:

• Brasil, uma biografia; Lilia Schwarcz

• Escravidão; Laurentino Gomes

 
 
 

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