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Vinicius de Moraes: entre a música e a poesia

  • Foto do escritor: Pugna!
    Pugna!
  • 25 de jul. de 2020
  • 7 min de leitura

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Entre a música e a poesia. Falar sobre Vinicius é transitar por entre a linha tênue que separa essas duas artes vizinhas, duas artes que costumam trocar carícias e influências, como duas irmãs que de tanto conviverem não conseguem evitar as semelhanças que o contato faz surgir. O nome de Vinicius pode até ter ficado gravado em mais alto relevo nas páginas do cânone literário brasileiro, pelo grande poeta que foi, mas ao mesmo tempo o seu nome reverbera em algumas das canções mais importantes da história da música popular brasileira. Falar de Vinicius é como abrir um grande livro, quem sabe um álbum, em que podemos ver um pedaço significativo da cultura do nosso país. Erudito e popular, o poeta soube, como ninguém, aproximar essas duas palavras.



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Vinicius de Moraes nasceu no dia 19 de outubro de 1913, no Rio de Janeiro. Desde a infância ele cresceu em contato com a música dos antigos escravos e o violão boêmio dos tios, irmãos da sua mãe. A vida na cidade do Rio, no começo do século XX, respirava ares afrancesados, ainda na ânsia de ser tão francesa como Paris, findou por ser apenas nossa. A poesia romântica ainda arrancava suspiros, o rigor dos versos parnasianos inspirava aplausos e louvores da elite intelectual. Enquanto em 1922 a Semana de Arte Moderna trazia o escândalo inicial de quem anuncia a mudança vindoura, Vinicius escrevia seus primeiros rabiscos de poemas na escola. A inclinação pelos versos foi herança paterna, o seu pai era doutor em latim, professor de piano, violino e francês, também afeito a escrever poemas. Clodoaldo era um homem sério, sisudo, “poeta e cidadão”, como disse o filho na elegia escrita pela ocasião da sua morte.


(...) Deste-nos pobreza e amor. A mim me deste

A suprema pobreza: o dom da poesia, e a capacidade de amar

Em silêncio. Foste um pobre. Mendigavas nosso amor

Em silêncio. (...)


A mãe, dona Lydia, era de uma família de boêmios, com muito apreço pela música que o povo ouvia. Vinicius cresceu assim, entre as influências dos dois, na fronteira entre o erudito e o popular. Ele era o segundo dentre os quatro filhos do casal e foi o escolhido entre os irmãos para ter a melhor educação possível, dentro das condições da família. Estudou num colégio de jesuítas, frequentado pela elite do Rio de Janeiro naquela época. Essa fase da sua criação católica iria se refletir mais tarde em seus primeiros versos da maturidade poética, transparecendo esse embate do desabrochar da juventude diante de um mundo constantemente assombrado pelo rótulo profano posto pela igreja. No poema “Ânsia” você pode ler e entender um pouco mais sobre o que estou dizendo (Ao final do texto deixamos uma lista com os links de acesso aos poemas citados no decorrer do artigo).


O poeta fez faculdade de direito e o amor à poesia o levou a estudar literatura em Oxford. Publicou seu primeiro livro, “O caminho para a distância”, por volta de 1933, refletindo nessa poesia da juventude toda a efervescência de uma visão de mundo marcada pelos dilemas religiosos. Partindo do nosso olhar leitor, poderíamos associar ironicamente a distância presente no título com a distância temática que os versos exibem, um afastamento do mundo. Já no segundo livro, em 1935, sob o título “Forma e Exegese”, começa a se desenvolver o lirismo envolvente que seria a grande marca da poesia de Vinicius nos trabalhos seguintes.


Não demorou muito até que os temas da sua obra ganhassem as cores da noite, da boemia, dos amores e das paixões. A maturidade trouxe para a obra de Vinicius a junção de duas qualidades raras de se ver atuando juntas num poeta, especialmente na poesia brasileira: uma sólida bagagem técnica, um profundo conhecimento dos meandros do fazer poético aliado a um espírito inquieto, passional e sensível, sem perder o senso estético e a elegância. Ele conseguiu a façanha de expressar em seus versos algo de si, sem escorregar num versejar piegas e por demais açucarado. Drummond uma vez disse: “Eu queria ter sido Vinicius de Moraes”. Os dois eram amigos, não muito próximos, pois o estilo de vida de ambos era muito diferente, Drummond era um homem mais tímido, centrado e de vida pacata, Vinicius vivia no olho do furacão, intensamente, entre uma paixão, um copo de whisky e uma roda de amigos em festa. A amizade era uma coisa muito séria para o poeta:


(...) Um bicho igual a mim, simples e humano

Sabendo se mover e comover

E a disfarçar com o meu próprio engano.

O amigo: um ser que a vida não explica

Que só se vai ao ver outro nascer

E o espelho de minha alma multiplica...



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Contava Vinicius que João Cabral de Melo Neto, outro de seus célebres amigos, costumava dizer que se o Brasil tivesse um poeta com o lirismo de Vinicius e a sua disciplina, então verdadeiramente teríamos um grande poeta. Mas o próprio Vinicius rejeitava esse caminho rígido do Cabral. “Ele fica lá com aquela dor de cabeça...”, não era o tipo de poesia que Vinicius buscava. Para ele a poesia vinha naturalmente com os amores e um pouquinho de whisky. Podemos dizer com toda a certeza que a poesia de Vinicius foi sempre movida pela paixão. Ele casou-se nove vezes, e a cada novo amor a sua poesia ganhava novo fôlego, a sua vida como um todo ganhava novas cores. A sua carreira profissional como diplomata tomava-lhe parte da vida, a poesia, a música e os amores vinham preencher o resto.


Nos anos de 1950 surgiu a parceria com o jovem Tom Jobim. Juntos fizeram a trilha sonora do Musical Orfeu da Conceição, uma peça teatral escrita por Vinicius, com um elenco composto totalmente por atores negros, interpretando uma adaptação do mito grego de Orfeu, ambientada numa favela carioca. A peça foi um sucesso e virou um filme extremamente premiado, dirigido pelo diretor Marcel Camus, reconhecido com a Palma de Ouro em Cannes e digno do Oscar de Melhor Filme estrangeiro em 1959. Vinicius de repente se viu apadrinhando uma geração inteira de jovens músicos que começavam a esboçar com ele um novo estilo musical, com bastante influência da sonoridade marcante do jazz norte-americano e o brasileiríssimo samba: a Bossa Nova. Vinicius e Tom fizeram juntos inúmeras canções clássicas, dentre elas uma das mais famosas canções do mundo, a Garota de Ipanema. Durante os anos 1960 Vinicius protagonizou uma revolução na música popular brasileira. Foi ele quem primeiro colocou um diminutivo numa letra de música, trazendo a informalidade que já reinava nas canções populares para as canções do rádio e a música polida da época. Até aquele momento prevalecia o estilo pomposo dos grandes cantores da era do rádio e do samba-canção. Com a canção Chega de Saudade, composta em parceria com Tom Jobim e gravada por João Gilberto, a Bossa Nova era inaugurada e caia no gosto do brasileiro. Muitos artistas como Caetano Veloso, Gilberto Gil e Chico Buarque ressaltam o impacto que a música teve na formação musical de cada um deles.


Vinicius trouxe a letra de música para perto do cotidiano. Falava simples e falava de amor, encantava não apenas pela sua simplicidade mas pela bagagem de elegância e precisão que a sua experiência como poeta trouxe para as suas letras. É, sem dúvida, um dos maiores letristas da nossa história musical. Anos depois as suas músicas foram traduzidas e gravadas por Frank Sinatra, levando a Bossa Nova para o mundo. Até que em 1968 ele perdeu o seu posto como diplomata. O Brasil de Vinicius não era compatível com o Brasil sangrento e ufanista da ditadura militar.


(...) Pátria minha... A minha pátria não é florão, nem ostenta

Lábaro não; a minha pátria é desolação

De caminhos, a minha pátria é terra sedenta

E praia branca; a minha pátria é o grande rio secular

Que bebe nuvem, come terra

E urina mar. (...)


Não viam com bons olhos um diplomata artista, falando a língua do povo e não a dos quartéis, fato que no fim das contas foi como uma libertação para ele, pois pôde se dedicar inteiramente à arte, liberto para sair em turnês, para frequentar os palcos e para abrir as portas da sua casa para os amigos. Vinicius era do tempo das casas abertas, festas em que qualquer um poderia entrar sem convite e onde se encontrava, sem qualquer cerimônia, a nata da música brasileira. Compositores vinham noite após noite oferecer músicas para que ele letrasse e estabelecesse parceria. Nessa época o músico e letrista ofuscou um pouco o poeta, roubando a sua atenção quase completamente. Depois da Bossa Nova vieram os Afro-sambas, em parceria com Baden Powell. época em que Vinicius se apaixonou à primeira vista pela atriz Gessy Gesse, uma amiga de Maria Bethânia. Foram apresentados num restaurante e saíram de lá juntos, casaram-se e não desgrudaram mais durante anos, foram morar à beira da praia na Bahia e então o velho ateu conheceu a vida dos terreiros de candomblé. Encantado ainda mais com a cultura negra, ele trouxe para os Afro-sambas os orixás, o axé do terreiro, a riqueza da cultura negra nessa dimensão mais profunda que ele ainda não conhecia e o grande público não era acostumado a ver na música de massa. “Vinicius de Moraes, o branco mais preto do Brasil”, foi como ele era conhecido na época e como ele dizia orgulhosamente. Tom, Baden e Toquinho, dentre as dezenas de parceiros musicais, foram certamente os que marcaram mais intensamente a história da música brasileira.


Falar em poucas palavras sobre Vinicius é um desafio impossível, visto que a sua obra é tão diversa e encantadora que poderíamos escrever dezenas de páginas sem esgotá-la. Por fim, uma das coisas que sempre é dita por quem conviveu com o “poetinha”, é que ele certamente não se adaptaria ao mundo de hoje. Um homem que vivia com as portas da casa abertas, cantando e falando de amor e amizade, certamente estranharia um mundo com tantos muros. Drummond uma vez disse que, dentre todos os poetas daquela geração, Vinicius foi o único que viveu como poeta. Que este breve artigo seja um aperitivo para que você possa mergulhar na arte desse grande brasileiro, um dos nossos maiores poetas do século XX. Toda a sua obra está disponível integralmente no site http://viniciusdemoraes.com.br/. Encerro este pequeno texto deixando um dos seus sonetos mais conhecidos:


SONETO DE FIDELIDADE

De tudo, ao meu amor serei atento

Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto

Que mesmo em face do maior encanto

Dele se encante mais meu pensamento.


Quero vivê-lo em cada vão momento

E em louvor hei de espalhar meu canto

E rir meu riso e derramar meu pranto

Ao seu pesar ou seu contentamento.


E assim, quando mais tarde me procure

Quem sabe a morte, angústia de quem vive

Quem sabe a solidão, fim de quem ama


Eu possa me dizer do amor (que tive):

Que não seja imortal, posto que é chama

Mas que seja infinito enquanto dure.


Estoril, outubro de 1939

Links de acesso aos poemas citados no texto:








 
 
 

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